Nossa, sei nem o que escrever sobre “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk. Uma história tristíssima e tocante; pior — um romance baseado em fatos.
Eis que estamos em 1820 e uma dupla de cientistas alemães, os naturalistas Spix e Martius, viajam numa expedição ao Brasil, com o patrocínio do rei bávaro Maximilian Joseph, para capturar amostras exóticas daquelas terras longínquas e engrandecer a coleção do nobre. Por amostras exóticas entenda-se: bichos, plantas e selvagens (no caso, seres humanos indígenas).
Autora mistura fatos da história que pesquisou cuidadosamente, com perspectivas imaginadas e lidas nas entrelinhas dos documentos oficiais, já que não se tem acesso aos pensamentos e experiências das crianças trazidas.
A questão é que os cientistas andavam por regiões indígenas recolhendo as tais amostras quando ficaram doentes e foram salvos pelo pajé de uma das tribos. O contato com os homens brancos já estava em andamento naquelas terras; muitos indígenas já começavam a ser catequizados pelos jesuítas e convencidos de que sua cultura e sua fé não valiam nada.
O pai da menina Iñe-e era um dos convertidos, um mau-caráter que queria posar de moderno para os brancos recém-chegados. A ponto de vender as crianças prisioneiras de guerra com outra tribo e oferecer sua própria filha de 10 anos como “brinde”.
Bom, o fato é que a menina foi levada de navio para ser exibida em uma turnê pela Europa. Chocada, claro, eu custaria a acreditar numa barbaridade dessas se não tivesse visto, com meus próprios olhos, um cartaz de propaganda de uma exibição parecida no museu colonial de Amsterdam. Eu me lembro que fiquei tão chocada de ver seres humanos servindo de atração como animais de circo (no caso de animais já é bem bizarro) que nem consegui olhar direito. No caso do museu, os “espécimes” vinham da África.
Pois eis que os cientistas enchem o navio com plantas, animais silvestres e 15 crianças (Iñe-e entre elas) e fazem a viagem até a Europa, que dura meses. O capitão do navio é um mercenário que só quer lucrar; portanto, apesar dos protestos dos cientistas (que, em termos humanitários, só têm o verniz da civilidade como diferença), raciona água e comida ao máximo. O resultado é que quase todas as crianças, animais e plantas morrem. De humanos, só ficam Iñe-e e Juri, um menino um pouco mais velho.
Agora imagine: os únicos sobreviventes não têm uma língua em comum, pois são de tribos distintas; eles também não conseguem se comunicar com os cientistas. A comida, o ambiente, a solidão, o horror e sobretudo o inverno glacial — tudo assusta.
Eles chegam na Europa sem nenhuma defesa imunológica contra tuberculose e outras doenças comuns entre os brancos. O frio (lembrem-se; estamos no século XIX) passa a acompanhar ambos em todos os lugares, assim como o céu cinzento.
A autora narra a história com os olhos da menina, que conseguia se comunicar com as onças e com as águas dos rios (tem uma passagem linda em que ela ouve histórias do rio Isar, que atravessa Munique). Iñe-e não entende as roupas, as construções, os costumes, as pessoas, a falta de higiene, a comida, e menos ainda a cerimônia de batismo onde ela tem o nome trocado para um cristão — ela se torna Isabella.
A incompreensão e o estranhamento de todas as partes envolvidas, incluindo a rainha — a sensação de que talvez estejam fazendo algo errado, percebida mais por Spix do que por Martius (esse último se sente mais confortável convencendo a si mesmo de que não comprou aqueles seres humanos como um mercador vulgar; apenas livrou os prisioneiros de uma tribo selvagem e os trouxe para a civilização e para a salvação do cristianismo).
É muita dor, muita tristeza, muita falta de empatia, muita ignorância.
E a autora ainda entrelaça esse relato com o de Josefa, uma mulher contemporânea descendente de indígenas, que nega suas origens até encontrar a ilustração de Iñe-e numa exposição em São Paulo. Ela vai atrás de saber mais de sua história enquanto chegam as notícias de massacres de povos indígenas, invasão de reservas ambientais, contaminação dos rios pelos garimpos, desnutrição de crianças e os povos originários sendo exterminados em escala industrial com patrocínio do Estado.
É triste, mas é a história do nosso país. Para mudar o futuro, é preciso conhecer o passado. E nunca precisamos tanto de bons professores de história como agora…
Dói, mas é preciso ler. Recomendo demais.
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