Nada como ter amigos queridos, cultos e generosos para realizar sonhos em ótima companhia. Há anos queria muito visitar a Documenta de Kassel, a maior exposição de arte contemporânea do mundo que acontece a cada cinco anos a 300 km de Berlim. Na Documenta13 eu não pude ir por diversos motivos, mas escrevi um texto aqui, falando inclusive sobre as origens e objetivos do evento.
Agora tive a oportunidade de passar dois dias em Kassel com o Rainer Bielfeldt e o Tiago Zarpack enchendo os olhos de sons, imagens, cores, provocações e muito verde (é a cidade mais verde da Alemanha). Conseguimos visitar 8 dos principais museus e galerias e muitas instalações externas, pois escolhemos passar as últimas horas conhecendo o Palácio de Wilhelmshöhe e o monumento de Hércules (mas isso é assunto para outro post).
A Documenta14 teve sua abertura em Atenas, na Grécia, pela primeira vez na história. Os 100 dias de exposição em Kassel terminam em 17 de setembro e a curadoria concentrou-se em tratar dos problemas migratórios, das crises econômicas, da violência e da intolerância; por isso a conexão com a capital grega. O resultado ficou realmente impactante.
Arte contemporânea não é uma coisa simples para pessoas leigas como eu; vi muita coisa que me encantou, mas muita coisa também que não entendi e não consegui ver valor. Observei que havia muitas instalações que enfatizavam sons em vez da linguagem visual; tanto em museus e galerias como entre árvores no meio dos parques, era comum ouvir sussurros, gemidos, assobios e sons estranhos vindos de caixas de som escondidas acionadas por sensores de presença. Com certeza, uma experiência muito interessante.
É um mundo de novidades e pontos de vista inusitados para compartilhar; mereceria um tratado, mas não tenho tempo e nem conhecimento suficientes para fazê-lo. Como leiga, vou destacar então as cinco obras que mais me encantaram, seja pelo visual, seja pela ideia ou contexto. Vamos passear, então!
1.Partenon de livros proibidos
Só posso dizer uma coisa sobre a obra da argentina Marta Minujín: g-e-n-i-a-l! Depois que o trabalho está feito, é daquelas coisas que a gente se pergunta como é que ninguém tinha pensado nisso antes. Pois a artista, lembrando a conexão com Atenas, e explorando o tema democracia (Atenas é o berço desse tipo de organização social, representada pelo Partenon), reconstruiu o templo grego em escala real com uma estrutura de metal recoberta de plástico recheado com livros proibidos em algum lugar do planeta (no passado ou no presente). Para a obra monumental, foram recebidas doações do mundo inteiro. Depois de terminada a mostra, os livros serão novamente doados.
O interessante, além do conceito e da grandiosidade, é verificar os títulos: vai do Alquimista, de Paulos Coelho, a Harry Potter, de J.K. Rowling, passando pelos 50 tons de cinza, contos dos irmãos Grimm e até a Bíblia. Dá para ficar horas descobrindo curiosidades. Se a gente pensar em ditaduras como as da Coréia do Norte e até mesmo Cuba, mais perto de nós, que controlam os livros que a população pode ou não ler, dá para ver que não é difícil encontrar títulos proibidos em pleno século XXI. Infelizmente.
Aqui algumas imagens desse cenário inesquecível.
2. Hotel de tubos
Essa obra, do artista curdo Hiwa K., é mesmo impressionante. Nos anos 80 do século passado ele saiu do Iraque como refugiado e fez uma longa e arriscada viagem até a Alemanha, onde conseguiu asilo (hoje mora em Berlim). Ele usou tubos de instalações subterrâneas na sua trajetória. Isso o inspirou a criar o Hotel de Tubos, onde os canos servem como peças de uma casa. Tem sala, quarto, banheiro e até biblioteca. Ele fala sobre a obsessão dos ocidentais com as construções verticais e do choque cultural em relação às moradias individuais (na cultura dele, é quase inimaginável alguém morar sozinho numa casa ou apartamento). A obra reúne tragédia e humor sem descuidar das questões sociais e estéticas. Não é a toa que ele foi o artista homenageado esse ano.
3. História bordada
Essa obra foi uma das mais lindas, delicadas e sensíveis que já vi. “Historja” é um bordado de pouco menos de 40 cm de altura por 23,5 metros de comprimento caprichosamente construído pela artista sueca Britta Marakatt-Labbas. Por meio de desenhos detalhados e belíssimos, ela mostra a história dos habitantes da Lapônia. Tem sangue, bichos fofos, guerras, cenas cotidianas e cenários típicos, tudo mostrado com uma delicadeza ímpar. Dá para ficar horas olhando. Pena que as fotos não conseguem reproduzir tanta beleza, mas dá para se ter uma ideia.
4. A padaria do Nassib
Essa obra em si nem é tão impressionante, pois trata-se da reconstrução de uma padaria libanesa num lugar da cidade onde, de fato, funcionava uma padaria (o legal em Kassel é que eles pegam espaços vazios que não são usados normalmente como galerias e museus para fazer as instalações, como nesse caso).
O encantador é a maneira como a artista Mounira al Sohl conta a história. A padaria reconstruída pertencia ao sr. Nassib, um libanês que resolveu dar uma chance às pessoas rejeitadas pela sociedade (deficientes físicos e mentais, ex-presidiários, etc). Por isso, o nome da padaria em árabe era algo como “o outro lado”. O negócio foi um completo fracasso por causa do preconceito da população, que considerava o local impuro cheio de funcionários sujos e incapazes. O boicote foi geral, mas o sr. Nassib conseguiu fazer seu negócio sobreviver por mais ou menos cinco anos, até que começou a guerra civil no país. Eis que faltou luz e água em toda a cidade, mas os grupos humanitários ajudaram a padaria, até por causa do seu histórico. O resultado é que aquele ficou sendo o único lugar da cidade onde tinha comida. Era entrar na longuíssima fila para ser atendido pelos “impuros” ou morrer de fome. O “sucesso” durou seis meses, até que a padaria foi bombardeada e completamente destruída. O final é triste, mas a história é linda. E, a julgar pela reconstrução, a padaria também era.
5. A usina de dinheiro
Esteticamente falando, essa instalação nos jardins do Palácio Orangerie é até feia; não tem nada a ver com o local. Ela parece um moinho de farinha, desses que funcionam com bois amarrados em cangalhas que vão caminhando em círculo para girar as engrenagens. Mas, nesse caso, a força motriz é humana mesmo. E, em vez de farinha, a produção é de moedas (fictícias, claro). A grande sacada é que os voluntários dispostos a ajudar a produzir “dinheiro” com sua força física e disposição ganham um bitcoin pelo trabalho (bitcoin é uma moeda virtual que tem valor também no mundo físico, pois pode ser convertida). A ideia do artista é reunir todos os bitcoins em uma conta corrente onde todos os participantes vão depois debater o que será feito com o dinheiro. Uma discussão criativa, instigante e cheia de significados. Pena que o artista não estava lá durante nossa visita e pudemos apenas contemplar a obra estática; não pude ganhar meu bitcoin…
Bom, é claro que tem muito mais coisas, mas o tempo e o conhecimento são limitados. Então deixo mesmo só essa amostra e a recomendação de que não percam a oportunidade de visitar a Documenta15, daqui a cinco anos, se puderem. Vale cada minuto.
ENIO PADILHA
Outro dia eu estava discutindo com um amigo sobre alguns sites que cobram para serem vistos. Eu mesmo, pago uma mensalidade para ler, por exemplo, o site nexojornal.com.br e acho que vale a pena.
Fizemos um exercício de tentar lembrar quais sites, dos que a gente visita regularmente, a gente estaria disposto a pagar para continuar tendo acesso. O seu site, Lígia, estava em primeiro lugar na minha lista. Por causa de posts como este aqui. Por causa de todos os posts que você escreve depois que volta de alguma viagem.
Quando conheci Berlin, em 2013, tive a certeza do valor do seu site, pois tudo o que eu vi na cidade era exatamente como você descrevia nos seus posts. Por isso eu sempre digo que, quando você viaja, todos nós viajamos com você. Obrigado por nos emprestar o seu olhar. Eu sei muito bem como dá trabalho fazer isso.
ligiafascioni
Puxa, muito obrigada! O seu site também entra nessa categoria, com certeza! Alguém devia pagar para eu viajar, né? Hahahahaha…. juro que voltaria cheia de posts 🙂
Abraços apertados, amigão!
Francielly
No texto vc diz J. P. Rowling… Mas é J. K. Rowling… Rs
ligiafascioni
Hahahahahahah…verdade! Fico devendo uma caixa de Bis pela revisão voluntária <3
Obrigada!!!
Laismery Maria de
Oi, Lígia, eu também visitei a Documenta e Gostei muito das três primeiras obras que você cita: o impressionante Paternon de livros, – eu cheguei lá na última semana da mostra e vi a obra sendo desmontada e a fila enorme de pessoas para pegar os livros; os ambientes nos tubos; e a lindíssima obra História, da artista sueca, essa foi a minha preferida. A Padaria do Nassib eu não lembro de ter visto. Mas, A Usina de dinheiro, em Orangerie, eu acredito que é obra de uma Documentada passada, pois ela estava lá na minha primeira Documenta, em 2002. Muito bacana a sua postagem. Obrigada.
ligiafascioni
Oi, Laismery!
Nossa, muito curioso o que você falou sobre a usina de dinheiro. Interessante porque descobri a obra por meio dos catálogos e matérias a respeito do evento, e eram reportagens atuais. Fiquei curiosa de verdade, pois você é testemunha ocular, e inclusive faz mais sentido, pois não estava funcionando. Mas posso ter me confundido (provavelmente).
Muito obrigada pela informação <3