Já faz tempo que eu estava querendo ler Liv Strömquist, a premiada quadrinista sueca famosa por seus livros polêmicos. Também estava precisando voltar a ler em alemão para não esquecer. Então, quando encontrei “Der Ursprung der Welt” (tradução livre: “A origem do mundo”) num sebo, não titubeei.
Essa moça mora atualmente em Mälmo, na Suécia, formou-se em sociologia e também ciências políticas. O trabalho dela, único e muito bem fundamentado, mistura humor, ironia e sarcasmo com muita informação, sempre citando fontes. Esse é apenas um dos muitos livros premiados dela, e acredito que todos deveriam lê-lo, principalmente na adolescência (quanto antes a pessoa entender o contexto do que está vivendo, melhor).
O nome do livro, “A origem do mundo”, é uma clara referência ao quadro de mesmo nome, do pintor francês Gustave Coubert, que retrata os genitais femininos de maneira crua e sem os filtros tão presentes nas pinturas oníricas e irreais de sua época (o quadro é de 1886, veja aqui). Depois de ser muito escondido e passar por vários colecionadores, incluindo o psicanalista Jacques Lacan, o quadro só foi exibido em público em 1995 no Museu d’Orsay.
Mas vamos ao livro; por que esse título? Porque ele trata basicamente de desmistificar o órgão reprodutor feminino; porque ele é tão escondido e demonizado, enquanto falos são celebrados de maneira escancarada em foguetes, obeliscos e arranha céus? Por que a vagina e a vulva são fonte de tanta vergonha, quando, na verdade, elas são a origem de todos os seres humanos?
HOMENS QUE ODIAVAM AS MULHERES
Liv começa o primeiro capítulo apresentando alguns homens, que claramente tinham problemas sérios com o aparelho sexual feminino.
Começamos com um sujeito chamado John Harvey Kellogg (sim, o dos sucrilhos!), um renomado inventor e médico americano. Ele acreditava que todas as doenças femininas (de câncer a gripe, de debilidade física ou mental a epilepsia— TUDO, mas tudo mesmo) era devido ao fato de que as mulheres se masturbavam. E a solução para isso era encher a vagina de ácido carbólico, produto que naturalmente ele produzia e vendia. Então, como diz Liv, se você achava que a pior ideia que esse sujeito teve na vida foi inventar os sucrilhos, reveja seus conceitos.
O próximo da lista é o Dr. Isaac Baker-Brown. Apesar de ser anterior ao Dr. Kellogg, esse senhor compartilhava da ideia de que o clitóris era a razão de todos os problemas de saúde das mulheres.
Para Dr. Isaac, a solução não poderia ser mais simples: extirpar esse órgão que só incomodava (a homens como ele, é claro). A gente pensa que essa é uma prática cruel originária de alguns lugares da África — mas o ódio que alguns homens têm pelas mulheres desafia culturas e fronteiras.
Para se ter uma ideia, a prática era razoavelmente aceita na comunidade médica até os idos de 1850. O próprio Baker-Brown realizou a cirurgia em mulheres que pretendiam pedir o divórcio, a pedido de seus maridos. O sujeito só foi excluído da associação médica em 1860 por causa de denúncias de que ele havia forçado mulheres ao procedimento, e, PIOR, sem o consentimento de seus maridos! Para se ter uma ideia, a última extração médica do clitóris foi feita em 1948 em uma menina de 5 anos de idade. Pense.
O próximo é ninguém menos que Santo Agostinho, que viveu no século IV. O cara pintou e bordou e teve uma vida agitada e colorida no sentido mais amplo, quando, do nada, resolveu que sexo não era um presente de Deus, mas uma traição a ele. E para mostrar que estava falando sério, resolveu passar o resto da vida no celibato.
Só que em vez de viver seu celibato quieto sem incomodar ninguém, ele não parou de pensar em sexo o tempo inteiro; mais especificamente o sexo das mulheres.
Foi ele que veio com a ideia de que as mulheres são sujas, fedorentas, nojentas, pecaminosas e que tudo era culpa da Eva (depois dele é que inventaremos tapa sexos de folhinha nos retratos de Eva).
Ora, se o senhor tem nojo de mulher, não fique com nenhuma; ninguém é obrigado. Simples assim. Pior que até hoje a gente vê seguidores dessa linha de raciocínio.
Temos ainda John Money, já no século XX, que achava que o mundo era um lugar simples e que todos os seres humanos se classificam em apenas duas caixinhas, mesmo que as evidências não corroborem a teoria.
Para ele, só existiam dois gêneros: masculino e feminino. Ocorre que entre 1% a 2% de todos os bebês nascem com órgãos genitais que fogem a essa classificação rasa. O que fazer? Acolher esses seres humanos, tentar entendê-los, amá-los? Não, é claro! Melhor passar a faca e enquadrar a criatura ao que ele achava mais legal sem nem perguntar para a pessoa que ia passar a vida com aquele corpo. Enfim.
Ainda tem mais horrores: uma característica que as bruxas queimadas em praça pública tinham em comum era o clitóris avantajado — as partes íntimas eram mostradas para todo mundo ver a “aberração”.
Liv também conta sobre Saartijie Baartman, uma mulher africana capturada e escravizada só porque um zoólogo achou seus órgãos genitais avantajados e cobrava ingressos para as pessoas vê-los.
E temos ainda a exumação do corpo da Rainha Christina da Suécia em 1965 (ela viveu no século XVII) para ver se ela realmente era hermafrodita. Para um grupo de senhores desocupados, essa seria a única explicação aceitável para seu comportamento “pouco feminino”. Os manés que abriram o túmulo só encontraram ossos e não chegaram a conclusão nenhuma, claro. Além de tudo, são uns gênios…
É SÓ UM BURACO?
No capítulo seguinte, Liv conta como os lábios genitais foram escondidos, ignorados e se tornaram motivo de vergonha a ponto das mulheres quererem fazer cirurgias para diminui-los, enquanto os homens sempre querem aumentar seus órgãos.
Já começa com a nomenclatura toda errada, pois os órgãos genitais das mulheres são compostos pela vulva (parte externa e visível, onde estão os lábios), os órgãos internos (colo do útero, útero e ovários) e a vagina que liga ambas as partes (que é o buraco propriamente dito).
Negar a existência da vulva, tentar apagá-la, diminui-la e fazê-la motivo de vergonha só faz as mulheres se considerarem inadequadas, impróprias.
Eu mesma me lembro de uma aula de educação sexual onde os órgãos femininos terminavam na vagina, como se a vulva simplesmente não existisse.
Mas o povo insiste em considerar as mulheres somente como um buraco, um repositório de pênis. Por que será?
A Liv, sempre irônica, dá o exemplo da sonda espacial Pioneer, lançada pela NASA em 1972, que levava uma placa de alumínio com imagens gravadas; tipo uma mensagem ilustrada sobre a vida na terra para algum alienígena que por acaso pegasse a sonda e… adivinhe?
O desenhinho do homem era certinho. No da mulher, eles tiraram o risquinho entre as pernas para não ficar tão explícito e não escandalizar os alienígenas. Só rindo mesmo…
Como resumo, a nossa cultura é construída de maneira que a mulher é representada como um ser oco e desprovido de sexo e precisa suplicar por um pênis para preencher esse vazio, sem o qual ela é incompleta.
E por que é tão importante reconhecer a importância e o papel da vulva como parte do corpo feminino? Porque a desinformação pode fazer mulheres, principalmente adolescentes, acharem que são deformadas ou anormais e não se reconhecerem nesses desenhos ridículos. Isso pode trazer traumas importantes até a idade adulta.
Sobre os homens e rapazes que acham que toda mulher é uma boneca de plástico, nem se fala! Quem não tem lábios é criança e isso diz muito sobre a cultura da pedofilia.
Mas será que sempre foi assim? A resposta simples e direta é: não.
A mitologia grega, por exemplo, tem várias histórias onde a vulva é apresentada como algo natural, uma parte do corpo celebrada e até danças onde mulheres exibiam as suas partes íntimas para celebrar as deusas. Até a idade média (quando as trevas tomaram conta) havia estátuas de mulheres com as pernas abertas como guardiãs das cidades em mosteiros, igrejas ou mesmo casas comuns.
A cultura celta também celebra a vulva das deusas. Na Micronesia, há várias esculturas de madeira com mulheres de pernas abertas exibindo orgulhosas as suas vulvas. Exemplos semelhantes também podem ser encontrados na Índia, gravuras rupestres na França, Grécia antiga, Ilha de Malta, Alemanha e Leste europeu. E se procurar mais, certeza que acha.
Enfim, não sabemos porque as pessoas gostavam tanto da vulva, mas sabemos duas coisas:
- A vulva fazia parte do sagrado/espiritual e não era considerada o seu oposto.
- A vulva não causava tanto pânico nas pessoas como hoje em dia.
O BEM BOM
O capítulo seguinte é dedicado ao orgasmo feminino, outro tema cheio de desinformação que só prejudica as mulheres. A narrativa é sempre a mesma: uma coisa facílima, normal e comum para os homens e uma coisa difícil, complicada e não necessariamente importante para a mulher.
A questão é que antes do Iluminismo, essa diferença não existia. Pelo contrário; acreditava-se, inclusive, que o orgasmo feminino era necessário para que uma mulher engravidasse (esse absurdo continua sendo distribuído como fake news para revitimizar mulheres e meninas estupradas que engravidam).
O fato é que até o final do século XVIII, homens e mulheres eram vistos como equivalentes, como corpos semelhantes, cada um com seus órgãos. Mas por volta de 1800, parece que todos os escritores e médicos ficaram obcecados em descobrir diferenças — veja que coincidência — bem na época em que a sociedade estava passando por mudanças importantes que incluíam a redução do poder da religião no Estado (e o risco de ter menos gente lembrando que as mulheres só deviam fazer a vontade de Deus).
Convenientemente, a sexualidade feminina passou a ser retratada como nula ou desimportante e a masculina forte e muito difícil de ser controlada; o inverso de antes (para os gregos, as mulheres eram como Evas; emocionais, passionais e excitáveis — e os homens, intelectuais e governados pela razão).
Uma quantidade inacreditável de bibliografia foi produzida questionando se o orgasmo feminino realmente existia; na verdade, para o médico Richard von Karfft-Ebing, as mulheres que recebiam educação adequadas deveriam ter pouco ou nenhum desejo sexual — e era isso que sustentava um bom casamento. Pensa num cara misógino.
As mulheres não se opuseram muito a esse novo desenho, por vários motivos: antes elas eram consideradas depravadas e por isso, traiçoeiras. Até as feministas da época foram convencidas de que a ideia boa, dizendo que as mulheres teriam mais poder quanto menos se deixassem levar pelos seus desejos. E com isso foi lançado o novo ideal feminino: a mulher assexuada, aquela realmente livre!
Outra coisa interessante é o que os médicos consideravam como uma mulher frígida: aquela que não incapaz de atingir o orgasmo pela penetração vaginal com um homem. Ou seja, se ela atingisse o orgasmo sozinha, ainda assim era frígida. Entendeu como esses cavalheiros se colocam como o centro do universo?
Então, segundo a autora, veio uma fase bem deprimente da sexualidade feminina: o orgasmo “de verdade” era aquele obtido somente pela penetração; o orgasmo obtido pela estimulação do clitóris era considerado algo menor, com menos valor, coisa de mulher frígida.
Na verdade, o que se descobriu mais tarde (aliás, bem tarde mesmo, só em 1998) é que o clitóris é um órgão enorme (porém, embutido) e cheio de terminações nervosas, que inclusive abraça as laterais da vagina. E que não existe orgasmo sem ele. Em resumo, todos os orgasmos femininos são clitorianos, sem exceção.
Liv ainda provoca: imagina se a medicina só descobrisse em 1998 o verdadeiro tamanho do pâncreas! Pensa que vergonha de séculos de pesquisa mal feita e preguiçosa!
O resultado é que livros publicados em 2006 continuam com informações erradas e continuam sendo usados até hoje.
MENSTRUAÇÃO
Liv ainda fala do desconforto que a menstruação provoca quando tratada abertamente Mas o povo insiste em considerar as mulheres somente como um buraco, um repositório de pênis. Por que será? sendo que é uma coisa absolutamente natural e necessária.
Eu me lembro quando tinha uns 5 ou 6 anos de idade e uma vizinha um pouco mais velha veio me contar um segredo que ela tinha acabado de descobrir: “desde os tempos de Adão e Eva” (ela usou essa expressão), as mulheres sangravam alguns dias, pelas “partes”. E não eram só algumas; eram todas, até as que a gente conhecia.
Eu ri e achei aquilo ridículo. Eu me lembro de ter falado: é claro que isso é mentira; se todas as mulheres sangrassem, todo mundo saberia, seria uma coisa comum, não seria nenhum segredo. É impossível todas as mulheres do mundo sangrarem e ninguém falar disso.
Mal sabia eu que o mundo onde eu estava me metendo não fazia o menor sentido…
É que a menstruação acabou se tornando um tabu (Liv conta que há quem afirme que a palavra tabu vem da palavra polinésia tupuá, que significa menstruação — mas ela não corrobora).
Em várias culturas, há muitas superstições e histórias sobre o poder maligno do sangue menstrual, impuro e capaz de destruir plantações, passar doenças. Para se ter uma ideia, a indústria do ópio não empregava nenhuma mulher porque se alguma estivesse menstruada, a droga sairia ruim (é tão irônico e bizarro que nem dá para comentar…).
Mas antes das religiões patriarcais entrarem em cena, a menstruação era tratada como algo menos sujo e mais sagrado. As religiões politeístas, como o hinduísmo, têm várias mulheres menstruando representadas no contexto religioso. E, apesar de tudo, o sangue menstrual ainda tem poderes mágicos positivos em várias culturas populares.
A questão é que entramos numa época em que diferenciar o corpo feminino do masculino passou a ser extremamente importante e a menstruação foi muito útil nesse aspecto; ela serviu de desculpa, por exemplo, para não aceitar mulheres nas universidades. Segundo o Dr. Edward F. Clark, em seu livro “Sexo e Educação”, de 1874, mulheres não deveriam estudar, pois gastariam todo o sangue irrigando o cérebro e não sobraria nenhum para menstruar (dêem uma medalha para esse gênio cujo cérebro não circula nenhum sangue).
Outro médico (Dr. Azel Ames) dizia numa publicação que mulheres não deviam trabalhar fora de casa para não interferir nas funções menstruais (mas pegar pesado lavando roupa e limpando casa era de boas). O interessante é que em épocas de guerra ninguém ligava para isso; os problemas que a menstruação causavam desapareciam magicamente — e curiosamente voltavam a aparecer quando os homens retornavam da guerra.
Inclusive tem uma história do Freud e de um amigo otorrinonarrigologista (escrever isso em alemão é mais fácil que em português, acredite!) Wilhem Fließ que estavam num bromance sério quando os dois encasquetaram (baseados sabe-se lá em quê) que o nariz da mulher estava relacionado à menstruação, os espirros eram ligados aos orgasmos e alguns pontos do nariz podiam tratar problemas ginecológicos.
E sabe a ideia genial que Freud teve? Um dos remédios era fazer a mulher cheirar cocaína. Achou pouco? Pois uma vez a esposa dela caiu na besteira de falar que estava com cólicas menstruais e ele e o amigo resolveram fazer uma cirurgia no nariz da pobre!
Dr. Fließ fez uma rinoplastia tão meia boca na Frau Freud que esqueceu uma gaze dentro e o nariz sangrou a ponto de uma hemorragia que quase levou a mulher a óbito. Freud achou que os sangramentos eram resultado de histeria provocados por anseios sexuais. E Emma Freud foi salva por outro médico e ficou com o nariz torto para o resto da vida. Sério.
Ainda tem uma análise muito interessante da história A Bela Adormecida relacionando-a com o rito de passagem para a adolescência.
CONCLUSÕES
Olha, amei de verdade esse livro. Aprendi muitas coisas que não sabia, fiquei sabendo de curiosidades e história — tudo de uma maneira leve, irônica e divertida.
Confesso que a tipografia me incomodou um pouco; como é uma história em quadrinhos escrita à mão, às vezes tem pedaços grandes de texto com uma letra difícil de ler (às vezes tão pequena que é difícil até de enxergar); mas pode ser porque em alemão as palavras são compridas — não sei como ficou em português.
Dito isso: leiam!!! Leiam e espalhem a palavra da Liv Strömquist pelo mundo. Esse livro é muito necessário e precisa urgentemente ser lido por todas as pessoas e de todas as idades a partir da adolescência. Devia fazer parte do currículo escolar. A vida das pessoas seria muito melhor com mais informação de qualidade, menos segredos e tabus.
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