O DIA EM QUE VISITEI UM PRESÍDIO LGBTQIA+

Essa foi uma das experiências mais impactantes da minha vida. 

Há alguns dias fui ao Brasil para ver meus queridos em Campinas e em São Paulo. Também passei 3 dias em Belo Horizonte, minha cidade do coração, onde tenho irmãos por escolha. 

Um deles é o meu amado Tio Flávio (ele não é meu tio de verdade, mas usa esse nome desde que era professor de pós graduação em marketing, quando o conheci — desde então, assumiu como marca), que sempre me acolhe na sua casa e me leva para conhecer um mundo novo e ampliar minha visão de como as coisas funcionam fora da minha bolha. Ele tem projetos sociais que envolvem mais de 1000 voluntários.

COMO DEVERIA SER

Pois na segunda-feira Tio Flávio me levou para dar uma palestra na APAC em Betim, um sistema alternativo às penitenciárias comuns, onde os presos trabalham e podem estudar. Eles mesmos têm as chaves de todas as portas, cozinham (ou seja, têm acesso a facas), costuram (têm acesso  a tesouras) e fazem cursos. Enquanto o sistema prisional comum tem cerca de 86% de reincidência (presos que, depois de soltos, voltam para a prisão), nas APACs esse índice é de menos de 5%. Além disso, custa muito mais barato. Eu conto mais detalhes na primeira visita que fiz, há alguns anos, nesse post aqui.

Pois bem: conversamos, visitamos o local (simples, mas mais arrumado e organizado que a minha casa), almoçamos com os apenados (nossa amiga Maura se voluntariou para fazer uma comidinha delícia) e partimos para a segunda visita do dia: um presídio comum, que eu nunca tinha visitado. E esse tinha um adicional: era um presídio LGBTQIA+, onde ficavam travestis, transexuais e pessoas que não sobreviveriam de jeito nenhum num presídio comum.

COMO DE FATO É

Começa que precisamos deixar os celulares desligados na guarita de entrada (impossível tirar fotos). Depois a gente entra numa espécie de caixa preta e todo o nosso corpo é escaneado. As paçoquinhas que a gente levou também tiveram que passar pelo raio-x.

No início, achei que a gente ia lá para visitar e dar uma palestra, como na APAC (sabe de nada, inocente!), mas Tio Flavio me disse: não, lá a gente não vai falar nada. Só ouvir.

E foi isso mesmo. A gente passou por 4 pavilhões, de cela em cela, num total de 380 pessoas. Elas não podiam sair para nada. As celas eram feias e escuras, muitas não tinham luz elétrica. Nas que tinham, a luz quase nunca era acesa porque o calor ficava insuportável.

Fomos num dia de chuva, então também tinha goteiras e muita umidade. 

A gente só podia dar a mão para as pessoas (elas valorizam muito a gente dar a mão) através das grades das celas, aberturas bem pequenas. 

Na primeira cela, eram 12 pessoas; algumas mulheres trans lindíssimas, que poderiam estar na capa de qualquer revista. Os rapazes também eram muito belos e bem cuidados na medida do possível. Eu sei que pouca gente vai acreditar, mas poucas vezes vi gente tão bonita junta.

A gente apertava as mãos, conversava um pouco, dava as paçoquinhas, pegava os catus (são bilhetinhos que eles escrevem dizendo o que precisam) e ia para a próxima cela. Até a última.

Tio Flávio nos contou que boa parte deles era morador de rua, expulsos de casa na adolescência. Alguns ainda esperavam pelo julgamento; estavam lá simplesmente abandonados. Gente esquecida pela família, pelo governo, pela sociedade, pelo sistema judiciário. Pessoas que foram rejeitadas a vida toda como se fossem aberrações. 

Gente cheia de talento, pessoas inteligentes, cheias de sonhos. Presas por anos em celas úmidas, feias, escuras e lotadas, comendo comida estragada. Como alguém pode sair daqui e se recuperar?

O Valdeci Ferreira, da Federação das APACs, também estava visitando um presídio LGBTQIA+ pela primeira vez. Sensível aos sentimentos humanos, ele observou que ao contrário dos presídios comuns, principalmente os masculinos, que são extremamente agressivos, violentos e perigosos, nesse aqui o que a gente podia sentir era principalmente carência de afeto.

Teve uma cela em que um dos moços inventou um rap para mim na mesma hora (ele era conhecido como MC Dada); havia desenhistas lutando por uma folha de papel; cabeleireiros talentosos (uma vez por semana eles podem usar um salão improvisado onde também são oferecidos cursos por poucos voluntários), gente como eu e você, mas que teve o azar de nascer fora do padrão aceito como o “correto” por quem manda nesse planeta.

NOS PRESÍDIOS, É MUITO INCONSTANTE O FORNECIMENTO DE PAPEL HIGIÊNICO, SABONETE, DESODORANTE, PASTA E ESCOVA DE DENTES E CUIDADOS BÁSICOS (ALGUMAS UNIDADES ENTREGAM ESSES ITENS A CADA DOIS MESES). O ESTADO PROVÊ APENAS ÁGUA E COMIDA (DE QUALIDADE BEM DUVIDOSA, POIS TODO MUNDO SE ACHA NO DIREITO DE JULGAR E PIORAR AINDA MAIS A VIDA DE QUEM JÁ ESTÁ NO INFERNO).  

As famílias têm o direito de mandar um Sedex quinzenal com esses materiais; podem incluir biscoitos, fotos ou um achocolatado. Mas tem um limite de peso (5 kg) e tamanho; e só pode ser por Sedex. 

Como o envio via Correios é caro, muitas famílias não conseguem mandar nada. E, no caso da maioria dos presos desse sistema, nem mesmo há família. Nos outros presídios, sempre tem uma mãe ou uma esposa que se sacrifica para mandar algo. Nesse, muitos não têm ninguém, e quando têm, são famílias bem pobres, que não conseguem pagar um kit e mais a taxa de envio. Eles dependem da caridade de estranhos para ter papel higiênico. Calcule.

Tio Flávio consegue montar uns kits básicos com a ajuda de voluntários e sortear entre os que não têm família (mais da metade), mas não consegue atender a todos.

Aliás, sobre os catus, aqueles bilhetinhos cuidadosamente escritos entregues para o tio Flávio, é onde estão as histórias. Uns precisam de uma consulta com a assistente social, outros querem que mande uma carta para a mãe, pedindo perdão. Há os que suplicam pela revisão da pena (de uma forma geral, muitas pessoas já cumpriram, mas ninguém se lembra de liberá-los, já que os processos acumulados estão empilhados e esquecidos em algum lugar). Numa das celas, uma travesti maravilhosa me pediu um código penal atualizado, que ela queria estudar para saber como sair dali.

Tio Flávio recolhe as centenas de catus, lê um por um e os encaminha para os médicos, assistentes sociais, defensores públicos, juízes e para quem mais ele conseguir. Quase todos querem ir para uma APAC (um sonho), mas essas instituições ainda não estão preparadas para receber pessoas LGBTIQA+.

Foi por isso que o Valdeci veio com a gente conhecer. Ele quer entender as demandas do público LGBTQIA+, já que, nesse caso, há algumas particularidades. Uma delas é que há muitos casamentos entre os presos; tem que pensar como administrar isso.

O TIO FLÁVIO FOI CHAMADO HÁ UM ANO E OITO MESES PARA VER COMO PODERIA AJUDAR (ELE JÁ VISITAVA OS PRESÍDIOS MASCULINOS E FEMININOS DA REGIÃO). NESSA UNIDADE JÁ TINHAM REGISTROS DE 9 SUICÍDIOS EM MENOS DE UM ANO. ATÉ O MOMENTO, FORAM 14 AUTOEXTERMÍNIOS NUM PERÍODO DE 18 MESES. Perfeitamente compreensível; não há perspectiva de uma vida digna nesse lugar, e a estada costuma ser de vários anos.

Conversei com um moço indígena super jovem e em depressão. Ele tinha sido preso pouco tempo depois de sair da tribo para a cidade grande. Acabou se metendo com as pessoas erradas e foi condenado a ficar lá por mais 11 anos (ele já tinha completado um).

Depois que Tio Flávio começou a visitá-los (como ele disse; o trabalho dele é ouvir), além de outras ações pensadas conjuntamente, inclusive com o apoio da juíza da comarca e do Conselho da Comunidade, o número de autoextermínios diminuiu. Em seis meses houve “apenas” um caso.

A gente sai de lá se sentindo um fracasso. Como é que deixamos as coisas chegarem a esse ponto? Como é que nas APACs os mesmos apenados estudam, trabalham e conseguem voltar e produzir, e nos presídios comuns o desespero é tão grande que leva ao suicídio?

Será que se essas pessoas tivessem sido acolhidas, respeitadas, pudessem estudar, desenvolver e, finalmente brilhar, como é direito e destino de todo ser humano, elas estariam nesse lugar horrível, sem nenhuma perspectiva de futuro?

Como é que essa gente linda ainda consegue acordar todo dia de manhã e ainda sorrir? E sonhar? E agradecer por uma paçoquinha?

Os presídios são a prova de que fracassamos como sociedade, como família, como seres humanos. A ponto do Valdeci, uma pessoa acostumada a visitar presídios, planejar e construir unidades de APAC, sair de lá chorando. Ele não conseguiu se conter. É muita carência de tudo, mas especialmente de afeto. Dá vontade de abraçar todos, mas a gente não pode.

A paulada foi muito forte e ainda estou digerindo. 

Eu só tenho a agradecer ao Tio Flávio, esse ser humano especial que dedica a sua vida a fazer o mundo um lugar melhor. O apartamento dele está abarrotado de doações (ele não aceita dinheiro) para montar kits para crianças e idosos e ele faz cada pacotinho com muito carinho.

Tio Flávio ainda conseguiu montar um projeto onde os presos (dos presídios comuns também) deveriam preencher um caderno inteiro contando a sua história. Cada caderno entregue descontaria alguns dias da pena. Agora ele tem pilhas e pilhas de vidas humanas registradas e está pensando o que fazer com isso. Mas para uma coisa, esses cadernos já serviram, além da redução da pena: uma excelente forma de terapia para quem está nessa situação.

Eu precisava compartilhar essa experiência porque ela foi muito transformadora. Um verdadeiro soco na cara. A gente tem que se organizar como sociedade para evitar que tantas vidas, tantos talentos, tanta humanidade seja desperdiçada (e pior, torturada, para benefício de ninguém).

Sei que vai aparecer algum comentário dizendo que eles estão lá porque mereceram (sempre tem). Para mim, quem julga é a justiça. Até porque não sei se faria pior se tivesse sido expulsa de casa com 13 anos, simplesmente por ser diferente do esperado. E que o mundo inteiro se dedicasse a me convencer que sou anormal, errada e indigna.

Vou aproveitar meu final de ano para refletir: onde foi que erramos? O que a gente pode fazer para reverter isso?

Vou pensar. Sugiro que você também.

8 Responses

  1. Martina
    Responder
    23 dezembro 2022 at 12:36 pm

    Liebe Livia, danke das du diese Erfahrung mit uns geteilt hast, wenn es eine Möglichkeit geben sollte von Berlin aus etwas zu tun (vielleicht eine Art Patenschaft oder so) bitte in deinen Social Media Account posten, bis dahin bleibe ich einfach nur dankbar für mein kleines gutes Leben. Feliz Natal

  2. Fabiana
    Responder
    23 dezembro 2022 at 1:19 pm

    Quanto custa um kit ? Oque pode conter ? Considerando o limite de tamanho ? Como fazer chegar a eles ?

  3. Naor Nemmen
    Responder
    23 dezembro 2022 at 1:56 pm

    Grato por compartilhar, Ligia! O triste é sber que por mais que as palavras “fotografem” um local ou um momento, elas ainda ficam longe da realidade, por vezes, indescritível… abs, segue crescendo, quanto melhor e mais forte estiveres, mais pessoas poderás ajudar!

  4. ÊNIO PADILHA
    Responder
    23 dezembro 2022 at 6:04 pm

    O que fazer?
    Pra começar, espero que os brasileiros NUNCA MAIS permitam que pessoas como o atual (quase ex) presidente cheguem ao poder.
    A gente viu o tipo de influência que esse tipo de líder tem é o tipo de inferno que tem a capacidade de fazer fluir dos esgotos da sociedade.
    Desculpe o desabafo. Bolsonaro NUNCA MAIS. Nem qualquer coisa parecida.

    • Ligia Fascioni
      Responder
      24 dezembro 2022 at 7:45 am

      Nossa, concordo plenamente com você. E ainda precisamos entender e conter os eleitores dele, que ainda defendem esse tipo de coisa. Tomara que as coisas comecem a mudar agora, para melhor…

  5. John Lukas
    Responder
    23 dezembro 2022 at 6:43 pm

    Obrigado por partilhar essa experiência com todos nós e nos levar a necessárias e profundas reflexões.
    Parabéns para o Flávio, quanta humanidade e afetividade!!

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