
Como um livro com um título tão curioso veio parar na minha mão? Eu super evito entrar na livraria Dussmann (a maior aqui de Berlim), com seus 5 andares de tentações; mas o prédio anexo com 2 andares só com livros em inglês, que me salvou nos primeiros anos aqui, exerce uma atração irresistível nessa pessoa que vos escreve.
A ideia era só passear, mas quando vi a estante de lançamentos de ficção científica com “The long way to a small angry planet“, de Becky Chambers, em destaque, ficou difícil. Ainda mais que, no canto superior esquerdo da capa tinha um selo indicando que a obra ganhou o Prêmio Hugo como melhor série (sim, tem outros volumes). Fazer o quê, né? Vocês estão de prova que era inútil resistir…
Mas vamos à história, que começa com Rosemary viajando numa cápsula espacial para começar seu novo emprego como assistente administrativa em uma nave que cava buracos de minhoca no universo (são tipo túneis que encurtam a distância entre pontos do universo em vários anos luz). Ela está num espaço que se chama Galáxia Central (acredito que seja a Via Láctea), com vários planetas e sistemas.
Rosemary é humana e nasceu em Marte, planeta para onde os ricos foram assim que terminaram de destruir a Terra (com guerras e mudanças climáticas). Os demais seres humanos morreram quase todos; os poucos que se salvaram foram viver dentro de estações espaciais até serem resgatados pelo governo da Galáxia Central, formado por várias espécies de seres sencientes. Daí eles foram para algumas colônias e se espalharam por outros planetas, mas numericamente e tecnologicamente, não são muito importantes. Tanto que foram acolhidos como refugiados e só obtiveram status de cidadãos da Galáxia há pouco tempo.
A questão é que Rosemary está fugindo de sua família rica por algum motivo bem sério (que será revelado lá pelo meio do livro) e forja uma nova identidade e histórico para conseguir esse emprego.
A nave, chamada Wayfare, tem poucos tripulantes, todos eles com alguma função definida.
O capitão, Ashby Santoso, é também um humano vindo do que eles chamam de Êxodo (os humanos sobreviventes resgatados). Ashby é um líder na melhor concepção do termo: respeita e valoriza as diferenças, consegue o melhor de cada um e resolve conflitos de maneira justa. Ele tem uma namorada secreta (romances inter-espécies não são bem vistos) que é uma soldada da espécie Aeluon chamada Pei. Esses seres são elegantíssimos e o corpo todo é coberto com uma superfície brilhante e lustrosa, como uma armadura; todos da tripulação acham os Aeluon os serem mais belos do universo.
Sissix é quem pilota a nave; ela é da espécie Aandrisk, um tipo de réptil muitíssimo inteligente; é de uma das espécies mais poderosas da Galáxia. Ela parece um dinossauro colorido, mas também tem penas que refletem suas emoções. Ela vem de uma cultura muito gregária e afetiva, com hábitos e comportamentos sexuais muito diferentes dos nossos.
O Dr. Chef é um Grum, uma espécie com 4 braços (eu o imagino como uma espécie de besouro), além das duas pernas. Ele é grande, volumoso, faz ruídos estranhos e a pele muda de cor dependendo do estado emocional. Grums nascem todas mulheres e, quando chegam à idade adulta, tornam-se homens. Na velhice, o gênero fica neutro. Dr. Chef viveu toda a sua vida de fêmea num planeta em guerra, cuidando dos feridos (ela era médica). Deprimida com tanto ódio e uma guerra sem fim, resolveu fugir do planeta (que acabou se extinguindo) e é um dos poucos exemplares que sobraram. Dr. Chef trabalhou como cozinheiro quando foi acolhido na Galáxia e começou a auxiliar um médico de lá, até que conseguiu validar sua formação. O resultado é que ele tem duas funções na nave: ele é médico e cozinheiro ao mesmo tempo.
Kizzy, também humana e vinda do Êxodo, é engenheira de bordo e resolve todas as questões técnicas de software e hardware, sempre com muitos robôs e inteligência artificial, mas sem nunca abandonar sua caixa de ferramentas com chaves de fenda e parafusos. Ela é curiosa, bem-humorada, inteligentíssima e super alto astral. Usa cabelos coloridos e roupas extravagantes; eu diria que é uma berlinense na aparência (mas não no humor…rs).
Jenks faz dupla com Kizzy e são melhores amigos da vida. Ele tem nanismo por conta de uma questão genética (existe tecnologia para resolver, mas ele e os médicos não consideram um problema, já que não afeta em nada a sua vida e em alguns casos é até vantajoso. É que a mãe dele resolveu voltar para a Terra em alguma selva minimamente habitável para viver numa comunidade tradicionalista e negacionista da tecnologia, porém quando seu filho nasceu, ela se deu conta de para criá-lo com saúde, teria que sair da Terra e buscar lugares tecnologicamente mais avançados — então acabou voltando para a colônia e abandonando a vida selvagem.
Jenks é apaixonado por Lovey, a Inteligência Artificial que controla toda a nave, e é correspondido, uma vez que ela é do tipo senciente (diferente de outros equipamentos puramente técnicos, ela tem consciência e sentimentos). O sonho dela é que ela tenha um corpo físico parecido com um humano, e esse tema vai se desdobrar por um tempo.
Ainda temos Ohan, da espécie Sianat Pair, que foi contaminada por um vírus há muito tempo e acabou desenvolvendo algo como se fossem dois cérebros numa só pessoa, capazes de, juntos, fazer cálculos que nenhuma inteligência artificial ou computador quântico consegue. Ele é o navegador da nave e faz os cálculos mais complexos para “furar”os túneis dentro do universo. Ohan é alto, esquio, com olhos e cílios enormes e coberto inteiro com uma penugem azulada como gelo. O pelo tem partes raspadas que formam desenhos e dá para ver que a pele é cinza. Ohan é extremamente anti-social (não por antipatia, mas por causa da sua condição especial — ele é bastante vulnerável aos outros vírus também).
Por último, temos Corbin, um humano que eu imagino ser um albino, pela descrição, e super mal humorado. Ele é especialista em algas e são elas o combustível para a nave se locomover no espaço. Corbin trabalha sem descanso que elas estejam sempre bem alimentadas, felizes e produtivas; se as algas morrem, o combustível acaba e eles ficam à deriva no universo até serem resgatados. Corbin tem um segredo que só vai ser revelado lá pelo meio da história e que faz o comportamento dele fazer todo o sentido.
A missão que dá nome ao livro é um super túnel que eles precisam “furar” para ligar a galáxia de uma ponta a outra e alcançar um planeta cheio de seres amargos, mal amados, racistas e rancorosos, mas com muitas riquezas minerais. Por causa de toda a dificuldade diplomática e do risco, o pagamento é muito bom e vai melhorar a vida de todos da equipe. Mas, como todo mundo sabe, não existe dinheiro fácil.
Bom, imagino que trabalhar e viver numa nave assim deve ser meio como trabalhar num navio cargueiro desses que atravessa oceanos e fica semanas em mar aberto; ou numa plataforma de petróleo. Seus colegas de trabalho acabam sendo a sua família, para o bem ou para o mal.
No caso do Wayfare, em parte devido ao talento de líder de seu capitão, Ashy, é para o bem.
Parece uma historinha de ficção, mas é uma aula de liderança que merecia ser ensinada nas escolas. Aprender a lidar com as diferenças, cada um com suas histórias, dramas, culturas e personalidades diferentes — todos tendo uma língua própria mas tendo que falar um idioma comum para todo mundo se entender; o grupo inteiro unido apoiando quem está precisando mais no momento. Os problemas que aparecem, o compartilhamento do protagonismo, a forma como as emoções e fraquezas são respeitados é de fato uma aula magna sobre o tema.
Enfim, umas das lições mais lindas disfarçadas de romance que li ultimamente. Esse é o primeiro livro da série de 3 da Becky Chambers, que é filha de um casal de cientistas espaciais e neta de um engenheiro participante do projeto Apollo da Nasa. Ela usou toda a criatividade, informação, educação e incentivo que ela teve da família para
produzir essa obra belíssima, cheia de humanidade e muita, mas muita criatividade. E pensar que a moça só conseguiu lançar o primeiro volume usando uma plataforma de financiamento coletivo!
Essa maravilhosidade já está disponível em português e você pode comprar o seu exemplar na Amazon do Brasil clicando aqui. Amei demais e já vou atrás dos outros dois!
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