Sobre designers e pessoas

fernandopessoa

Nos últimos tempos venho sendo assaltada por uma sensação incômoda quase toda vez que tenho a oportunidade de ver designers apresentarem seus projetos, sejam estudantes de graduação, pós-graduação, ou mesmo profissionais atuantes no mercado. Levei um tempo para identificar o problema, mas creio que agora o descobri.

É o seguinte: os designers estão se esquecendo das pessoas.

De onde consigo observar, a principal diferença entre a engenharia e o design (já disse isso aqui outras vezes) é a estética no seu sentido amplo. Tanto a engenharia como o design preocupam-se com o conceito, o projeto, a escolha dos materiais, o processo produtivo e o ciclo de vida do produto. Mas para a engenharia, o foco é a máquina e seu desempenho. Para o design, o foco é a pessoa, o ser humano (foi por isso que migrei da engenharia para o design; estava sentindo falta da estética).

Na sua origem, aesthesis significa aquilo que é sensível, que afeta os sentidos — como as pessoas sentem, vêem, cheiram, tocam e ouvem. Tornar a interação entre a pessoa e o objeto uma experiência útil, produtiva e prazerosa é função primordial de qualquer projeto executado por um designer; e isso, em última instância, é função da estética. Designers existem para servir as pessoas, tornar sua estada no planeta melhor e inclusive, ajudar a preservar o tal planeta.

Então, como explicar que que a etapa do projeto em que se pergunta, questiona, estuda e observa as pessoas, tem desaparecido das apresentações como que por encanto, sem deixar rastros? Até onde sei, as informações do usuário são parte fundamental e imprescindível do método projetual.

O profissional (sempre alegando falta de tempo) utiliza pesquisas secundárias e infere que já sabe o que é melhor para o usuário. Vamos fazer assim porque pesquisas científicas desenvolvidas por britânicos na Transilvânia concluíram que pessoas com esse perfil gostam disso; vamos fazer assado porque a tendência em voga em Adis Abeba aponta para esse caminho. E onde ficam as pessoas que vão usar o produto, aquelas de carne e osso, não as das estatísticas?

Já questionei isso algumas vezes, e a resposta azeda que sempre recebo é “na prática a teoria é outra“. É mesmo? Então por que o profissional que diz isso sempre tem (ou quer ter) um MBA no currículo? Desculpem, mas, para mim, quem usa uma teoria diferente na prática ou não aprendeu a teoria ou então leu e não entendeu nada. Profissional excelente usa a teoria sim, fundamenta seus conceitos sim e, principalmente, considera o método projetual uma referência importante. E pensa nas pessoas como seres humanos, não objetos abstratos ou números.

Outra desculpa já bem rodada é a clássica “falta de tempo“. Ora, penso que tudo é uma questão de como o profissional se organiza para trabalhar, como elege suas prioridades. Se ser excelente é prioridade, então não dá para fazer de qualquer jeito. Se o designer gasta sua vida e competência simplesmente correndo atrás dos prazos, sem nenhum controle da situação, corre o sério risco de perder a sua dignidade profissional e virar uma bela abóbora, que só faz rolar ladeira abaixo ao sabor a geografia.

O tempo é igual para todo mundo e alguns dos melhores profissionais que conheço encontram tempo para ler poesia, fazer música, praticar esportes e até, veja só, observar pessoas. Há até quem, não contente em apenas ler, inclusive escreva poesia. O que me faz lembrar o verso do genial Caetano que fala do poeta português na indefectível música Língua: “Gosto do Pessoa na pessoa“. Eu também.

E ainda acrescentaria que gosto mais ainda da pessoa no designer.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

11 Responses

  1. 18 novembro 2009 at 5:37 pm

    Lígia, adorei este texto.
    Sua percepção do ponto fundamental do designer foi perfeita.
    Há tempos busco algo que possa explicar de forma objetiva – e sem “silicones” -, o verdadeiro papel do designer na sociedade de hoje.
    Parabéns!

  2. eduardo m. e.
    Responder
    18 novembro 2009 at 7:03 pm

    Lígia, belo texto!

    Realmente acredito que o papel do designer é este! Mas não deixo de me perguntar: então porque existem no mercado produtos que não atendem a esta finalidade: não se esquecer das pessoas. Penso que muitas vezes o designer pode ser o responsável sim, mas nem sempre. Infelizmente muitas vezes o designer é vencido na disputa por um produto ideal, sob o ponto de vista do design. Nosso trabalho antes de mais nada é uma ação coletiva e o mercado está contaminado por pessoas que não entendem o “fazer design” e mesmo assim representam empresas importantes no panorama nacional. Muitas vezes o engenheiro ganha, quando apresenta um produto com menor custo de produção porém sem benefícios ao usuário. Então queria acrescentar que antes de mais nada o dever mais urgente do designer é conscientizar a sociedade sobre o nosso papel. Assim, será mais fácil atuar de maneira adequada e colocar em prática o que realmente aprendemos. O design no Brasil ainda não está consolidado, mas estamos no caminho. Acredito que concordem comigo.

    Lígia Fascioni: Oi, Eduardo! Concordo com você, às vezes o mundo conspira contra os designers e as decisões são tomadas por gente que não entende design. Mas estou citando o comportamento dos próprios interessados. Se um designer faz isso, como exigir algo diferente de quem não estudou tão profundamente o assunto?

  3. 18 novembro 2009 at 7:22 pm

    Grande texto! Parabéns
    Estará no nosso http://www.eniopadilha.com.br na segunda-feira.

  4. Fatima
    Responder
    18 novembro 2009 at 10:12 pm

    Gostei do texto. Eu sempre sonho com o dia que algum designer criar um selim macio, mais amplo, mais anatômicamente correto para combinar com um guidom e pneus que permitam a uma senhora de 60 aninhos andar numa bike que faça a diferença porque as do mercado são duras, muito altas e perigosas. Concordo que aliar conforto e funcionalidade num veículo de duas rodas para agradar uma idosa não é fácil, mas acho que seria um sucesso. Precisamos de estabilidade e conforto. As tais “magrelas” não animam uma gordinha de cabelos brancos, que adoraria andar numa bicicleta bem bolada. Ah e outra coisa: há uma marca de calçados que faz solas fofinhas mas comprei uma sandália de dedo (em couro, prateada, com pedrinha etc), que tem um espaço ínfimo, na sola, para acomodar a planta/dedão com joanete. Com o tempo a pele de todos nós fica calosa e doi se ficar apoiada no friso da sola. Alô designers das industrias de caçados! Nem todo pé é de princesa! E nós da plebe com é que ficamos? Eheheheheh …
    Gostei muito do viés que a prosa de Ligia tomou. Penso que o designer poderá ser um profissional com grande força humanizadora porém essa coisa chamada mercado impõe-se massificando-nos, nos traduzindo em estatísticas querendo negar nossas individualidades.
    Abraços gerais. Fatima

  5. Cleide Coelho
    Responder
    19 novembro 2009 at 7:37 am

    Quero dizer que já se tornou um hábito ler seu blog todas as manhãs. Parabéns!!!

  6. 19 novembro 2009 at 7:51 am

    Realmente, Ligia, tenho que concordar: as pessoas têm feito “o mais fácil”, sempre.
    E o mais fácil é supor que já sabe o que as pessoas querem, é mais “curto” o caminho de só ficar diante do computador, como se criar envolvesse só isso, o criativo e a máquina.
    Precisamos acreditar no nosso trabalho, cobrar corretamente para conseguir ter o tempo totalmente necessário para fazer o estudo correto para que a criação sirva a seu propósito e não para que as pessoas depois se prostrem à criação.

  7. Erly Miranda
    Responder
    19 novembro 2009 at 8:38 am

    Sem palavras.

    Uma aula, que eu guardarei e lembrarei.

    As vezes nos tomam o tempo coisas que são fúteis, que nos fazem perder certa noção de tempo e espaço, porém há sempre algo que podemos fazer para que o trabalho flua com eloquência e essas coisas fúteis possam ser dissipadas.

    O tempo as vezes é um inimigo, e muitas desculpas já foram ditas em respeito o porque o job não foi entregue no prazo. São vários empecilhos diários, mas concordo com você, que a questão do material a ser utilizado em determinada embalagem interferi no processo criativo.

    Muito obrigado Lígia.

  8. 20 novembro 2009 at 10:40 am

    Ótimo texto Lígia.

    Também penso que os designers estão esquecendo das pessoas, alias todo mundo esta esquecendo a se próprio, os valores estão invertido. Estamos vivendo em um mundo completamente desequilibrado e como você disse, os designers existem para servir as pessoas, tornar sua estada no planeta melhor e inclusive, ajudar a preservar o tal planeta. É como Charles Bezzera diz em seu livro “O designer humilde” …só designers humildes podem consertar os problemas que estamos presenciando…

    Obrigado e abraços.

  9. 25 novembro 2009 at 4:00 pm

    Adorei o seu texto.

    Concordo plenamente que há um certo desumanismo predominando no

    design de forma geral.

    Obrigado.

    Espero que visite meu blog: http://vikdias.blogspot.com/

  10. Carlos Zardo
    Responder
    1 dezembro 2009 at 8:24 pm

    Excelente texto!

    Porém por vezes, tenho a sensação que o CLIENTE está se esquecendo dos CONSUMIDORES, ou seja, seus clientes.

    Prazos apertados, falta de verba para remuneração adequada e pouca valorização do trabalho tornam o design cada vez mais pasteurizado.

    Sucesso!

  11. Caio
    Responder
    14 fevereiro 2012 at 9:22 pm

    Por favor, participem de nossa pesquisa para a elaboração de um projeto de Revista de Design.
    Inicialmente é apenas uma proposta acadêmica, mas existe a chance de levarmos a ideia adiante, nos ajudem!

    https://docs.google.com/spreadsheet/formResponse?formkey=dDBkZzZWNjFrdm1xOWpjTkFNajlDb0E6MQ&theme=0AX42CRMsmRFbUy0xMGJlNDQxZS1jZjM4LTQ5NmEtODdjYS05NDIzNDBmYzdmNmM&embedded=true&ifq

    Obrigado, desde já!
    Qualquer dúvida, basta perguntar!

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