Nós vamos te receitar um gato

Olha, eu vi o livro “We’ll prescribe you a cat”, de Syou Ishida, em praticamente todas as listas de melhores livros de 2024. Então não queria ficar de fora, ainda mais sendo gateira. Pelo título, eu já imaginava uma novelinha água-com-açúcar, então fui sabendo. Li, concordei com os termos e mergulhei.

Na verdade são várias histórias com um ponto em comum: uma clínica misteriosa, onde trabalham somente um médico (ou pelo menos parece) e uma enfermeira. A história se passa em Kyoto e a autora é claramente uma fã de Haruki Murakami, dado o mistério do local onde fica a clínica, que não é visível a todos, tem uma história trágica e fama de mal assombrada.

A primeira história é a de um rapaz jovem, que trabalha numa grande empresa sob o comando de um chefe abusivo. Ele está passando por um processo de burnout, com sintomas de depressão profunda, mas não quer preocupar os pais, que moram no interior e têm grandes expectativas para o filho único. Alguém recomenda a ele essa misteriosa clínica, cujo endereço é incerto, no último andar de um prédio escondido entre outros dois cujo acesso se dá por uma alameda nem sempre visível.

Ele vai até o tal lugar e é recebido por uma enfermeira jovem e mal humorada, que o leva até o consultório simples. Com apenas uma mesa e duas cadeiras. Após ouvir sem muito interesse os problemas que o rapaz relata, o tal médico encerra a sessão dizendo: “Vamos receitar para você um gato” e pede para a enfermeira trazer uma caixa de transporte com um gato dentro. Eis que o rapaz se vê subitamente com Bee, uma vira-lata fofa de 8 anos, um pote de ração e uma caixa de areia, além de instruções sobre alimentação e cuidados, e a prescrição de retorno dali a 10 dias. 

A gata provoca situações que jamais aconteceriam sem sua presença e a vida do moço dá uma verdadeira reviravolta. Ele se apega à gata (assim como seus novos amigos) e reluta em devolvê-la. O médico lhe dá mais alguns dias e faz uma descarada chantagem emocional, dizendo que a felina, ao ser devolvida, irá para um abrigo para ser sacrificada. É claro que o rapaz fica mexido e, vou dar um spoiler, adota a gatinha (quem poderia imaginar? Espero não ter estragado a surpresa).

E vamos para a segunda história, de um homem de meia idade que trabalha num call center e não consegue mais dormir com raiva de sua nova chefe, excessivamente simpática, na opinião dele. Por meio de recomendações diversas, ele vai parar nessa clínica, é atendido pelo mesmo doutor que não demonstra muito interesse no paciente e, adivinhe: ele sai de lá com Margot, fêmea de três anos de idade, que muda a vida dele e de toda a família (a esposa era alérgica, mas consegue contornar a situação).

E assim a história vai seguindo, com pacientes sendo atendidos com o mesmo desleixo, recebendo gatos como se fosse remédio e tendo suas vidas transformadas. Temos ainda uma mãe que que foi forçada a abandonar um gatinho quando criança e sofre até hoje com isso; temos uma designer de bolsas perfeccionista que exige demais dos funcionários, do namorado e de si mesma; e finalmente uma geisha que tem a história mais triste de todas.

Eu confesso que me incomodei com basicamente duas coisas: a irresponsabilidade de colocar um animal sob a responsabilidade de uma pessoa desconhecida e que claramente está numa fase problemática da vida (não sabemos se ela vai conseguir dar conta de cuidar de um animal) e a ideia de que gatos resolvem qualquer problema. Que ótimo seria; pessoas com gatos estariam com a vida ganha, né?

Bom, sobre a entrega de gatos assim, de maneira aleatória, podemos usar a desculpa de que a clínica misteriosa talvez tenha alguma informação que não sabemos. Talvez ela tenha a “ficha completa” do paciente, de seu caráter e de suas capacidades como tutor e esteja esperando realmente que cada pessoa tenha um gato correspondente para resolver seus problemas. Vai saber, né? A licença poética de uma clínica “fantasma” pode cobrir todos esses furos. 

Sobre o gato ser capaz de resolver todos os problemas, vamos voltar novamente para o mistério da clínica. Talvez para essas pessoas seja verdade mesmo. Alguns se resolvem entrando para uma religião, outras achando um hobby, algumas com trabalho voluntário, outras ainda com um cachorro, enfim. Gatos podem de fato despertar sentimentos poderosos; mas não é para todo mundo. Senão, não existiria gente que devolve gatos (eu conheci pessoalmente um caso e o bichinho era impossivelmente fofo — nunca me conformei com isso).

No mais, o que posso dizer? Bonitinho, principalmente a encadernação de capa dura, toda ilustrada com gatinhos (é uma pena que comprei um volume usado na Amazon e veio sem a sobrecapa, que parecia linda). 

Se você gosta de gatos e quer se distrair, vai lá. Mas realmente acho que não merece esse hype todo, principalmente para estar na lista dos mais vendidos e ainda ter uma parte 2 (já que o volume 1 ficou em aberto). Talvez a parte 2 explique as lacunas na história, mas não sei se vou ler. Se alguém aí leu, por favor, me conte!

A boa notícia é que tem em português e você pode comprar o seu nesse link.

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