Olha, preciso falar a verdade: eu detesto livro de guerra. Eu já li muitos e sofro demais. Quando eu leio, é como se eu me teletransportasse para o lugar e a situação, e guerra é uma das coisas que me deixa mais indignada, nervosa e revoltada no mundo. Eu li esses dias uma frase que é bem verdade (não tinha o autor, infelizmente): ler é uma coisa muito louca, pois você simplesmente alucina sob o efeito de uma folha de papel impressa. O livro é uma droga poderosíssima. E é isso mesmo.
Dito isso, jamais passaria pela minha cabeça comprar um livro que falasse sobre a participação do exército brasileiro na segunda guerra mundial, nem mesmo se a capa fosse maravilhosa…rs
Porém… meu amigo escritor e professor Ênio Padilha fez uma resenha empolgadíssima do primeiro livro do Maurício Ricardo chamado “Missioni”, que trata justamente desse tema (leia a resenha aqui).
O Maurício Ricardo, para quem não está ligando o nome à pessoa, é o chargista que faz as animações do BBB (Rede Globo). Além de escritor, ele também é jornalista, músico e historiador. O moço também tem um canal no Youtube chamado “Fala, M.R.”, onde ele faz análises políticas e do cotidiano com conhecimento de causa.
O Maurício, aliás, foi o responsável pelo episódio mais ouvido do meu podcast. Ele divulgou a resenha do livro “A.I. Superpowers” no canal e foi uma chuva de ouvintes nunca repetida até hoje, três anos depois.
Não o conheço pessoalmente, mas chegamos a fazer uma Live na época da pandemia, pois ele, para completar, ainda tem uma escola de tecnologia para crianças.
Bom, eis que comentei num post do Ênio que tinha ficado curiosa sobre o livro e não é que o moço, gentilíssimo, me mandou um exemplar de presente?
Bom, então vamos à história.
Eduardo é um estudante direito, branco, classe média alta, no Rio de Janeiro nos anos 1942. Ele e seus colegas participam de uma passeata pedindo que o Brasil entre na Segunda Guerra mundial (por mais explicações que o autor dê sobre o contexto, jamais vou entender alguém demandando a entrada em uma guerra).
O fato é que apoiar os Estados Unidos parecia ser uma boa ideia para proteger a democracia naquele momento (quem iria imaginar que justamente eles apoiariam uma ditadura militar que viria alguns anos depois, né?).
Bom, tanto fizeram que finalmente os americanos aceitaram o apoio brasileiro. Entre os 25 mil soldados que foram enviados para a Europa, parte era militar de carreira, parte era de voluntários idealistas como Eduardo (a maioria dos seus colegas de curso caiu fora quando viu que teria que lutar de verdade).
No navio, o moço reencontra um amigo de infância, filho da empregada de sua família (eles têm quase a mesma idade, mas é como se vivessem em planetas diferentes, dada a diferença de oportunidades por causa da cor da pele e da classe social). Orlando, o amigo, é inteligentíssimo, apesar de ter que ganhar a vida como garçom e vendendo doces no semáforo, em vez de poder estudar, como Eduardo.
Já no navio, Eduardo vê que as coisas não saem exatamente como ele tinha imaginado. Tudo parece sem muito planejamento e com enormes falhas de comunicação (ficaram quase um ano se preparando para embarcar), havia problemas de comida, alojamento, e muitos soldados sequer conseguiram chegar do outro lado do oceano em condições mínimas de saúde para lutar.
Os uniformes desenhados pelos militares brasileiros eram muito parecidos com os dos nazistas, a ponto deles serem confundidos com prisioneiros de guerra quando chegaram ao Porto de Nápoles, na Itália.
A integração com os americanos também não foi aquela maravilha (aparentemente faltou muita comunicação), mas o pior foi justamente a arrogância dos militares de carreira, que se achavam superiores aos civis voluntários e não escondiam isso.
Um colega de Eduardo acabou sendo o responsável pelo destacamento dele e se revelando um ser humano desprezível, machista e racista (muito mais do que a média naquela época, que já era altíssima). Diniz era o ser mais escroto que você possa imaginar (ou conhecer, pois ele reproduz um comportamento que a gente tem visto muito nos últimos anos).
O livro mistura o depoimento do Eduardo, em seus cadernos de lembranças, e a descrição de um narrador. Tem toda a história dele e da participação de seu pelotão na Itália, em especial numa missão num vilarejo chamado Missioni, próximo dos Alpes, onde Diniz e Orlando acabam se desentendendo seriamente, com consequências bem sérias para Orlando.
De volta ao Brasil, cheio de traumas de guerra, Eduardo casa-se com sua noiva (num tempo cheio de convenções, a moça também meio que foi empurrada para o casamento, uma vez que mal reconhecia seu namorado de antes).
Eduardo acaba trabalhando com o pai no escritório de advocacia depois de se formar, mas não consegue se ajustar à vida normal, assim como muitos dos chamados pracinhas que lutaram ao lado ele. Os herois nacionais chegaram do front e foram esquecidos praticamente na mesma semana; nenhuma compensação, nenhum suporte; nada foi oferecido como agradecimento para os voluntários.
Desgostoso, depois de alguns anos Eduardo resolve tentar dar um significado à sua existência ao defender os direitos dos colegas, que foram completamente abandonados e apagados pelo governo da época por interesses políticos.
Essa “rebeldia” acabou incomodando os militares da ditadura, pois não era interessante destacar essa parte da história e o sujeito não parava de chamar atenção sobre os pracinhas.
Como resultado, Eduardo foi acusado de ser comunista, claro (a falta de imaginação desse povo é impressionante; qualquer um que resolva criticar o status vigente recebe esse adjetivo, por mais sem sentido que seja!).
Naquela época era comum pessoas que criticassem governo serem acusadas, presas, torturadas e mortas — já que numa ditadura, quem está no poder não deve satisfações a ninguém e pode censurar as notícias — então a corrupção, os crimes e as mortes podem correr soltas e livres, desde que perpetradas pelo lado “certo”. Eu mesma peguei o finalzinho dessa fase macabra da nossa história e fiquei sabendo de algumas histórias próximas (uma vez uma professora no primário entrou chorando na sala de aula porque seu irmão tinha desaparecido — depois ela se deu conta da indiscrição e suplicou para que nenhum de nós contasse para nossos pais que ela tinha chorado, senão ela também poderia desaparecer — era uma época em que tínhamos que cantar o hino nacional todo dia antes de começar a aula).
Bom, eis que Eduardo não é morto, mas acaba sendo exilado, como tantos outros conhecidos ou não. E isso não é spoiler. Você não tem ideia do tanto de coisa que acontece, do final surpreendente, das coisas que ele descobre pelos meios mais improváveis e do rumo inusitado que sua vida acaba tomando.
É história de guerra sim, e tem muitas passagens em que a pessoa fica irritada, nervosa e emocionada. Mas vale muito a leitura.
Não só pela trama em si, que é muito boa, mas porque também é uma ótima maneira de aprender um pouco mais de história do Brasil (eu não fazia nem ideia), pois, apesar dos personagens serem ficcionais, os eventos foram baseados em uma longa e aprofundada pesquisa, com documentação farta e depoimentos dos próprios pracinhas. Vale pelo entretenimento e pela aula.
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