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De onde eles vêm

Comprei “De onde eles vêm”, de Jefferson Tenório, porque tinha gostado muito de “O avesso da pele”.

Apesar do tema ser o mesmo (racismo), os dois livros são completamente diferentes. O primeiro livro dele é muito bom, mas esse deveria ser incluído na bibliografia básica de ensino de todas as escolas do Brasil, na minha opinião.

Mas vamos à história.

Joaquim é um rapaz negro que nunca conheceu o pai. Sua mãe teve uma vida dificílima, como todo tipo de trabalho precário. Quando ela morreu, Joaquim foi morar com a avó e a tia.

Agora Joaquim tem por volta de 20 anos de idade e passou no vestibular para o curso de letras, pelo sistema de cotas. Sua avó está em estado avançado de demência; ele se desdobra com a tia nos cuidados básicos: dar banho, trocar as fraldas, alimentar e remédios. A tia tem um emprego fixo de serviços gerais e faz bicos como faxineira para complementar a renda — Joaquim está desempregado. Ele lê muito e por isso não aceita abusos, de maneira que não consegue parar em emprego nenhum.

A vida em casa é um inferno — a casa é precária, a avó, que apanhava do ex-marido fica às vezes violenta, pois confunde Joaquim com o finado marido. A tia está sempre exausta e se anestesia assistindo programas de televisão.

Na universidade, o moço se depara com um mundo de pessoas brancas, classe média, que o tratam como se ele não pertencesse àquele lugar. Se ele entrou pelas cotas, deve ser burro ou incompetente. Além disso, letras não é curso para pobre, pois não dá emprego bom, como medicina, direito ou engenharia.

Os professores debocham dele, pois muita coisa é nova e ele não tem ideia. Não fala inglês, como os colegas que estudaram em boas escolas, não tem computador. Mal tem dinheiro para a passagem de ônibus (mora num bairro longe).

Seu melhor amigo de infância é Lauro, outro rapaz negro que mora no mesmo bairro e faz direito. E Lauro tem um problema adicional: além de preto e pobre, ele ainda é gay. Pense numa vida complicada.

Joaquim namora Jéssica, que também é cotista da universidade e tem uma filha pequena. Ela tenta se adaptar como dá.

E ainda temos a colega de curso Saharienne, também cotista. Apesar de também pobre, ela vem de uma família mais estruturada — a moça é super engajada e consegue navegar  melhor o sistema, a ponto de lutar para que todos os colegas possam ser melhor integrados, com mais suporte e apoio.

Sinval, outro personagem interessante, é dono de um sebo, que além de despertar o gosto de Joaquim pela leitura, iniciou o rapaz na literatura. O objetivo do moço é se tornar um escritor e poeta; um sonho quase impossível para alguém como ele, que só tem acesso a empregos precários e com jornadas extenuantes.

A história vai se desenrolando como um diário, escrito por Joaquim em primeira pessoa. A gente vai acompanhando o dia-a-dia difícil, quase sem perspectivas; os amigos que passam o dia no bar jogando sinuca, a responsabilidade com a avó, a paixão pela colega de turma que frequenta outros grupos sociais.

Ele vai ficando cada vez mais perdido, dividido entre querer entender esse novo mundo e não se perder das suas origens, suas raízes, das pessoas que sempre o apoiaram e que entendem os problemas que ele está passando. 

Todo dia é uma luta para conseguir o dinheiro para ficar uma hora inteira em pé, enlatado e cozido dentro de um ônibus lotado de pessoas suadas, que se arrasta no trânsito de Porto Alegre; depois ainda andar mais um tanto e pegar outra condução até chegar na aula. 

É uma história dolorida, porque, como pessoa branca, eu só imagino, mas não faço ideia do que é o racismo no dia-a-dia. Eu pude estudar numa universidade pública morando com a minha avó, mas não tinha que cuidar dela e muito menos sustentá-la. Eu consegui estágios bons porque já tinha feito Escola Técnica — Joaquim não consegue nem uma bolsa de estágio porque não tem experiência e precisa estar pelo menos na quarta fase para se candidatar.

Ler essa história me encheu de revolta, tristeza e, principalmente, vergonha. Porque eu já fui contra as cotas. Eu simplesmente não entendia que esse é um mecanismo básico para a mudança social. E que apenas as cotas não bastam; é preciso dar apoio financeiro também — transporte, comida e material de estudo custam um dinheiro que a maioria dessas pessoas não têm de onde tirar.

E para aqueles que acham que os cotistas roubam vagas, para mim é como achar que imigrantes roubam empregos. Se você, que estudou numa boa escola, nunca teve que trabalhar em escala 6×1 para comer ou sustentar outras pessoas, e que fez intercâmbio, não consegue tirar uma nota melhor que um cotista que estudou numa escola pública cheia de precariedades — sinto lhe informar, mas o problema não são as cotas.

Fiquei com o coração doendo quando Joaquim conversa com um colega que trabalha com ele num posto de gasolina — o rapaz diz que o sonho dele é estudar matemática. E a gente sabe que a probabilidade de isso acontecer é muito baixa, por todas as dificuldades que ele vai ter que enfrentar, concorrendo com um rapazinho branco herdeiro que passa o dia no tiktok falando de meritocracia.

É um mundo muito injusto — e a gente contribui muito para que ele seja assim; seja na maneira de tratar as pessoas, seja subestimando a dor delas. Infelizmente. Agora temos que descobrir meios de desfazer essa merda. 

Sobre o título do livro, a origem é de um poema que Joaquim começa a escrever: “De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo.

O que eu posso dizer? Queria ter podido ler esse livro há uns 20 anos ou mais. Queria que todo mundo que é contra as cotas lesse esse livro. Queria que todas as pessoas que acreditam que o sucesso de alguém depende apenas do esforço e da boa vontade, lessem esse livro. Eu queria que todo mundo lesse esse livro e abraçasse os Joaquims e as Sahariennes da vida.

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1 comentário

  1. […] Resenha do livro “De onde eles vêm“, de Jefferson Tenório. O texto escrito está nesse link. […]

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