Eu já tinha visto elogios para “Lessons in Chemistry” (tradução livre: “Aulas de Química”), de Bonnie Garmus, mas não dei muita bola, pois parecia ser um romance de sessão da tarde e não é exatamente o meu gênero predileto.
Porém… encontrei o danado num sebo dando sopa por €2,50. Como resistir?
Olha, melhor investimento. Realmente, é uma história de sessão da tarde mesmo, mas eu amei cada página!
Sabendo no que se está entrando, não tem decepção: sim, os personagens são um pouco estereotipados — no primeiro diálogo você já identifica quem é vilão e quem é mocinho, sendo que os vilões são caprichados mesmo, do tipo que escorre veneno pelo canto da boca…rsrs. Já a banda boa da história, além de ser maravilhosa, é inteligentíssima (incluindo até um cachorro intelectual…rs). Mas enfim, vamos à história.
Elizabeth Zott, a mocinha, naturalmente belíssima, vem de uma família muito complicada: seu pai usava argumentos religiosos para enganar as pessoas, a ponto da família ter que se mudar de cidade de tempos em tempos para evitar a revolta pelo dinheiro roubado. Sua mãe, uma narcisista, fugiu assim que o meliante foi preso. Seu irmão mais velho foi seu melhor amigo e professor durante toda a infância (passada em bibliotecas, pois ninguém se importava em matriculá-la numa escola por tão pouco tempo), mas acabou se suicidando aos 18 anos. Ele não aguentou a pressão por ser gay numa família ultra religiosa e foi a forma que viu de se livrar do terror que o pai provocava na casa por causa dele.
Com a prisão do pai, Elizabeth se viu sozinha, mas por ser super inteligente e dedicada, acabou conseguindo uma bolsa de estudos. Ela conseguiu estudar nas melhores universidades, nas não conseguiu terminar seu doutorado depois de uma tentativa de estupro por parte de seu orientador (ela teve que fugir — nos anos 1960 era ainda pior do que é hoje — ninguém acredita na vítima).
Ela tinha publicações de respeito, pois era uma gênia. Mesmo assim, só conseguiu trabalho num laboratório de pesquisa não muito importante, e ganhando mal.
Pois lá ela conhece Calvin Evans, um gênio da química, que, apesar de jovem, já tinha sido indicado 3 vezes ao prêmio Nobel. Tem todos aqueles episódios de comédia romântica — e no final os dois se apaixonam loucamente e passam a morar juntos (lembre-se, estamos em meados de 1960 — uma mulher cientista num laboratório de pesquisa já era raro; morando com um homem sem se casar é o auge da subversão).
Calvin queria muito se casar com Elizabeth, mas ela recusou com todas as forças. Ela era uma cientista e queria continuar sendo. Casada com Calvin, ela perderia toda a sua identidade profissional, como aconteceu com inúmeras outras cientistas, como a Mileva Einstein, uma física brilhante que foi apagada da história por conta da fama de seu marido (sem falar que casando, ela iria ter filhos, cuidar da casa, etc — 1960, lembram?). Acho que de todas as mulheres cientistas casadas da época, só a Marie Curie escapou e conseguiu ter seu próprio trabalho reconhecido depois que ficou viúva.
Enfim, Elizabeth deixou claro que ela era e queria continuar sendo uma cientista — casamento e filhos não estavam nos seus planos. Mesmo que não tivessem um casamento convencional, se fossem casados ela sempre seria a Sra. Evans, nunca mais Elizabeth Zott.
Bem, ele compreendeu (surpreendentemente o moço tinha uma cabeça boa e não era machista como seus contemporâneos) e viveram felizes para sempre por dois anos, até que ele sofreu um acidente e morreu (isso não é spoiler; acontece logo no início do livro).
Sério, eu fiquei mal e quase chorei. Era uma relação muito bonita e consegui sentir a perda da Elizabeth como se fosse minha (também sou casada com uma pessoa maravilhosa que aceitou não ter uma família convencional com filhos — então isso me pegou com força).
Eles tinham um cachorro que Elizabeth achou na estrada (ele tinha sido treinado numa base militar para achar explosivos e foi abandonado porque não era muito bom no serviço) que Elizabeth resolveu ensinar palavras como se fosse uma criança. Então tem uns trechos narrados pelo cachorro que são hilários; ele, como toda a família, era muito perspicaz e inteligente.
Pois logo que ficou viúva Elizabeth percebeu que estava grávida (não existe método anticoncepcional 100% se você tem uma vida sexual ativa, e ela sabia disso). O resultado? Ela foi sumariamente demitida (onde já se viu uma mulher solteira e grávida?).
Agora imagina o inferno que virou a vida dessa mulher. Só que ninguém no laboratório cheio de homens conseguia desenvolver a pesquisa, de maneira que muitos iam na casa dela pedir explicações e ajuda para escrever artigos, fazer experimentos, etc. Tanto que a linda montou um laboratório de química na cozinha da casa dela e foi vivendo dessas “consultorias” até um fato que aconteceu na escolinha que a filha frequentava.
A menina, que aos 4 anos já tinha lido mais livros que todos os professores da escola dela, estava tendo seus lanches roubados por uma coleguinha que não tinha mãe (o pai solo era produtor de TV e se atrapalhava com a questão da comida).
Elizabeth era uma cozinheira fantástica, pois para ela, cozinhar era puro exercício de química. Eis que o pai da menina, encantado, convida Elizabeth para estrelar um programa de culinária (que não a seduziu nem um pouco, pois ela queria ser reconhecida como cientista, não como estrela — e sabia que a comunidade científica tem um grande preconceito com quem populariza o saber). Mas o salário era bom e ela não estava em condições de escolher.
O programa foi um sucesso nem tanto pelas receitas (que eram ótimas), mas pelo carisma e o jeito totalmente inusitado da apresentadora. Ela explicava tudo do ponto de vista de reações químicas, era muito clara e honesta (imagina declarar na televisão que você não acredita em Deus com a maior tranquilidade), um raciocínio lógico impecável e acho até que era um pouco autista, dada a concentração que ela dedicava às tarefas e à maneira literal com que ela interpretava algumas reações das outras pessoas.
Elizabeth inspirava outras mulheres a estudarem e não se limitarem ao trabalho doméstico, o que, de fato, incomodou muita gente. Mas o personagem foi realmente muito bem construído; não tem como não amar essa linda, com sua filhinha gênia e seu cachorro igualmente inteligente.
Tem outros personagens igualmente interessantes, como um pastor pouco crente, a vizinha que odeia o marido e a ex colega de trabalho recalcada que se torna sua maior aliada.
Enfim, preciso dizer que amei passar esses dias com Elizabeth e sua história, mas, quando fui escrever a resenha, descobri duas coisas. A primeira é ótima! Já tem a versão do livro em português. Para comprá-lo, é só clicar nesse link.
A segunda não é tão boa: a Apple TV fez um seriado e eu assisti o trailer. Olha, não gostei. Eles mudaram o cachorro (imagina se uma base naval ia ter um poodle), a vizinha, enfim. Não é como imaginei (nunca é). Não gostei da vibe da personagem, não gostei de nada.
Vá lá por sua conta e risco, mas recomendo fortemente ler o livro antes.
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