Pensa numa pessoa com a incrível habilidade de contar histórias com personagens complexos e cheios de contradições. Estamos falando da mineira Carla Madeira, que domina a arte como poucos.
No seu maravilhoso “Véspera”, ela reforça ainda mais a admiração que comecei a cultivar depois de “Tudo é rio”, resenhado aqui.
A história começa com Vedina, uma executiva que começa o seu dia de trabalho nervosa por conta de seu casamento em frangalhos. O filho de cinco anos quebra a cristaleira e derrama a gota que faltava para transbordar a tsunami que se formava dentro dela. Vedina coloca o menino no carro de qualquer jeito, sem se preocupar se ele se machucou, e, no caminho, num ímpeto de irritação no meio de uma discussão com o hiperativo garoto, abre a porta do carro e o coloca para fora. No meio de uma avenida de mão única. Um menino de cinco anos.
Ela demora alguns minutos para se dar conta da enorme bobagem que fez, mas é impossível voltar. No tempo de dar a volta à quadra e retornar ao local do abandono, desesperada, acaba rememorando a história da sua vida e o que fez com que chegasse a esse ponto. E viajamos numa máquina do tempo para a véspera da véspera da véspera que deu origem a todos os acontecimentos.
Carla é mestre em descrever cenas difíceis, fáceis de escorregar no constrangedor. Ela passeia pelo erotismo, pela violência e pela melancolia com igual desenvoltura. Os personagens não são bons nem maus; são humanos, frágeis, complexos, perdidos.
E os capítulos, curtos e densos, começam com os avós do pai da criança e sua história triste e sofrida. Depois da mãe e do pai dele, gêmeo de outro irmão.
Com camadas espessas de mágoas diversas de todos os tipos experimentada pelo casal, o pai registra os meninos com os nomes de Caim e Abel para provocar a esposa obsessivamente religiosa. Ela jamais o perdoa por isso e a vida, que já não era tranquila, vai apresentar desafios muito mais intrincados.
A gente fica conhecendo a vida dos meninos, da diferença de visão de mundo de cada um, da rotina em casa e na escola, da inteligência e do carisma do Caim, em oposto contraste ao desinteresse, amargor e desconfiança de Abel.
Ficamos sabendo também de onde vem a tão baixa estima da moça que se submete ao inaceitável; quando criança, ela foi dada “de presente” pelos pais à avó recém viúva, para que não ficasse sozinha. A avó era um amor, mas a menina nunca superou a rejeição.
Conhecemos também Veneza, melhor amiga de Vedina (onde a Carla encontra esses nomes, gente?), do clube de matemática, dos padres e professores do colégio.
As histórias são aparentemente simples, mas os personagens fariam a alegria de um psicanalista.
Dá para ler de uma sentada só; você abre o livro e, como ele tem capítulos curtos, vai emendando um no outro, e, quando vê, já acabou.
Só tenho a agradecer à Valéria Jansen do Clube do Livro de Muenster que me apresentou essa maravilha.
E quer uma notícia sensacional? A Carla Madeira vai participar da reunião mensal do clube do livro, no dia 15 de maio de 2022 pelo zoom (às 15 horas no Brasil e 20 horas na Alemanha). Para participar, é só mandar uma mensagem no instagram do @clubedolivromuenster que a Valeria passa o link. Corre que dá tempo de ler o livro e ter esse privilégio de conversar com a autora!
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