Sempre fui boa aluna, daquele tipo que senta na primeira carteira e só tira 10. Juro que não era puxa-saquismo, eu bebia as palavras do professor como se fossem água de cachoeira. Aprender, para mim, é uma das coisas mais legais que existem — acho até que a gente vem para esse planeta só para isso (e para beijar muito também, é claro).
Passei mais da metade da minha vida estudando ciências exatas oficialmente, e as humanas (arte, literatura, história, filosofia), nas horas vagas. Para ser bem sincera, achava que cálculo e física eram muito mais difíceis, uma vez que não imagino ser possível aprender a resolver uma integral tripla ou aplicar um operador laplaciano em equações diferenciais sozinha; mas poderia ler na praia Os Irmãos Karamazov sem muita dificuldade.
O bom de um curso de engenharia é que a gente pode acreditar em praticamente tudo o que o professor diz, pelo simples fato de que ele pode nos provar matematicamente como chegou às conclusões que está apresentando, não tem erro. A mesma coisa acontece com os livros e os artigos. Dificilmente a gente lê algo absurdo ou que não faça sentido. O ruim é que a gente se acostuma a não duvidar, apenas se esforça para entender.
Pois um dos maiores choques que tive quando fui estudar marketing foi justamente essa falta de certezas. Já numa das primeiras aulas, o professor nos apresentou duas ou três definições sobre um determinado tópico e passou a aula debatendo-os. Confesso que, ingenuamente, eu achava que no final ele iria concluir alguma coisa. Como vi que isso não aconteceu, perguntei, quando ele ia saindo (repare a falta de noção):”Professor, o senhor deu três definições. Mas qual é a certa?”. Ele, surpreso com a pergunta, respondeu: “Não tem certa. Fulano acha isso, Beltrano acha aquilo. Foi isso que nós debatemos a aula toda”. Frustrada, fui para casa, como se alguém tivesse arrancado as folhas do último capítulo de um livro da Agatha Christie. Como assim, não tem certo? Qual é o final da história? Então para que a gente está estudando?
Depois de um tempo de muitas dúvidas habitando meu pequeno cérebro maniqueísta, mergulhei de cabeça no design. Li tudo o que me caiu nas mãos, e muita coisa se contradizia. Eu mesma desenvolvi um método que coloca em xeque boa parte do que eu estudei (é claro que fundamentei o conceito em outras coisas que estudei também).
Todo dia leio coisas que derrubam mitos do design que eu teimosamente acreditava serem verdades. Penso que o problema é justamente esse: em se tratando de aprendizado, não dá para crer. Tem que duvidar sempre, procurar respostas até ficar satisfeito e depois ainda ler um artigo que desmonta suas certezas novamente. E assim caminha a humanidade…
Confesso que esse novo mundo desconhecido no qual não se pode confiar em mais nada ainda me assusta. Não sei mais se os meus queridos livros dizem a verdade (será que existe uma verdade?). Não sei se o que eu tinha aprendido continua valendo. Aos poucos vou me dando conta de que a minha cultura de almanaque de farmácia não dá nem para o começo. Eu tenho que estudar muito mais a fundo filosofia, antropologia, história, psicologia e mais um monte de coisas para começar a formar uma opinião mais ou menos balizada sobre qualquer coisa. Nas ciências humanas e sociais, os conceitos estão ligados de um jeito meio incestuoso; as idéias se encontram no quartinho dos fundos, os personagens cochicham usando meias palavras, os assuntos se misturam em orgias semânticas. Eu estava numa sala bem iluminada lá na engenharia e agora não paro de encontrar corredores cheios de portas para lugares misteriosos.
O fato é que, dominando o medo, no final das contas estou até gostando bastante. Estou aprendendo mais, mudando bastante de idéia, corrigindo um erro aqui, outro acolá, descobrindo pontos de vista nunca antes vislumbrados. O negócio vicia. Afinal, quem não gostaria de poder escrever seu próprio final num livro da Agatha Christie?
Ligia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br
Clô
Puxa, que pena que parou, gostaria de estar ao teu lado para continuar esse papo muito bom, talvez agora estejas vislumbrando o que eu queria dizer com “raciocínio de engenheira” (não era ofensa era só uma forma de ver a tua forma de ver (ui))
Tereza Jardim
Que deliícia!
Eu percorri o caminho inverso ao seu. De certa forma.
É que meus anos de faculdade já começaram nas incertezas e mil-nuances do design, e mesmo pra mim foi um choque e tanto. Não vou dizer que sou desenvolta com números e cálculos, mas sempre tive mais facilidade com pensamentos mais objetivos na escola [física, química…].
Mas fico bem aliviada ao ver outra proposta pra essa falta de certezas. Você acabou de me mostrar que não preciso necessariamente me sentir perdida, e sim motivada a encontrar mais caminhos e respostas!
transitoriamente
Com o perdão da frase feita, mas Sócrates foi fantástico quando disse: “Existe a Ciência e a Opinião Certa”.
A ciência me encanta, mas a opinião certa me resolve.
Belo texto Ligia.
Abs, Antonio
transitoriamente
Ah! Hoje todo mundo parece tão cheio de certezas, todo mundo tem uma resposta para quase tudo. Deixar de lado algumas dessas certezas me parece FUTURO. Abs, Antonio
Fernanda
É sempre um prazer ler seus textos!
Esse, especialmente, traduz fielmente meu início de experiência com o marketing e o design.
Renata Rubim
Ligia, me ocorreu te enviar esta entrevista, bem antiga, para mostrar como o budismo ajuda a ver estas coisas… É só um comecinho! Aí vai:
” KENJI EKUAN
DESIGN PODE SER PARTE DA VIDA REAL
Por Cláudio Ferlauto
Kenji Ekuan nasceu em 1929 em Tóquio, Japão. Graduou-se em 1955 pela Tokyo National University of Fine Arts and Music e, em 1957, pela Art Center College of Design de Los Angeles, Estados Unidos. Atualmente é o presidente da GK Design Group, que reúne treze empresas e emprega mais de 200 designers no Japão e na América do Norte. Ekuan foi presidente da JIDA(Japan International Designers Association) e do ICSID (International Council of Societies of Industrial Design). Seu método de trabalho de inspiração budista, engloba todas as áreas do design: produto, imagem corporativa, embalagem, editorial, ambiente urbano.
Aqui trechos da entrevista que fiz com o sr. Ekuan, via fax em 1997.
Por gentileza, faça um rápido perfil da sua formação pessoal e profissional até chegar ao design.
– A guerra terminou em 1945, quando eu estava na Academia Naval. Depois, fui educado para ser um sacerdote budista. Em 1950, eu me inscrevi no Departamento de Arte da Universidade de Arte e Musica de Tóquio. Em 1955, depois de graduado, fui enviado ao Colégio Central do Comércio e Indústria (nos EUA) e fiquei por dois anos lá. Em 1957 eu voltei ao Japão, me estabeleci na GK Associação de Design Industrial e cheguei à sua presidência.
O que o budismo tem a ver com seu conceito de design?
– a) Há três cânones no budismo, que são Butsu, Ho e So. Butsu significa a imagem e imaginação do espírito de Buda. Ho significa a estrutura que aproxima o caminho ao espírito de Buda. So significa o homem, é o sacerdote que realiza a aproximação do espírito de Buda ao caminho das pessoas. Assim Butsu, Ho e So (pronuncia-se tudo junto Buppohsoh) são interpretados como imagem, estrutura e forma. Portanto, esses cânones significam diretamente desenho de atividades. Ou seja, design.
b) Nascimento , vida, doença e morte são capacidades de sofrimento do ser humano. Buda oferece a nós várias sabedorias. Design é um trabalho que oferece conforto espiritual e físico.
c) Há uma mandala no budismo. Nós podemos unir a imagem do universo através da mandala. O espírito da mandala mostra o universo complexo e o caminho da simplificação. A liderança simplificada nos dias de hoje é altamente sofisticada na precisão dos sistemas. Veja o exemplo na Internet.
O que é um bom produto? E que produto sintetiza essa sua concepção?
– O acessório de mesa do molho de soja Kikkoman é um bom exemplo. É um produto que une a tradição e o presente. Na base da total produção em massa, é um produto confortável e bonito na mesa. Há nele um típico bom desenho.
Sua geração – na qual estão Kenzo Tange, Ikko Tanaka e Shigeo Fukuda – participou da reconstrução do Japão e praticamente definiu os padrões de excelência do design japonês . Como o design acabou tendo essa enorme força nesse processo?
– a) Forte vontade de construir uma nova vida.
b) Desejo do belo diariamente no meio da vida. Desejo de liderança das atividades do design, dirigindo a democratização dos meios materiais e da beleza do mundo. Esse desejo está erguendo a qualidade de vida de todas as pessoas e nações.
Desenhar motos (e tratores por exemplo) é muito diferente de desenhar prédios e automóveis, pois inverte os paradigmas do design tradicional, que cuidava apenas das superfícies externas dos objetos. Qual o segredo para projetar as entranhas mecânicas aparentes de uma moto?
-Nós queremos aproximar os elementos. Quando cada bom desenho parte de elo da composição conjunta, no sentido da produção de massa, o resultado é um produto bem balanceado. O todo pela parte e uma parte pelo todo é a palavra-chave. Um bom exemplo de análise é o bom inseto gafanhoto.
No caso da Marca Nike, quais os elementos sistemáticos que podem vir a determinar um padrão global de gosto e compreensão dos produtos?
-Perseguir qualidade da engenharia do material. Desenvolver a qualidade de imagem pesquisar os interesses pessoais por região, gênero, etc. Utilizar a imagem de atletas no topo dos rankings. Caso similar é o Swatch e o Walkman.
Revista Abigraf mai/jun 98 pág.78″
Marcelo Kunde
Oi Lígia, td bem? Teria como conseguir com a Renata o link da entrevista completa? Brigadão.
ligiafascioni
Oi, Marcelo!
Já pedi para a Renata. Mas também achei alguns links procurando no google. Olha só:
http://en.red-dot.org/2404.html
http://chilepd.cl/content/view/4432/Kenji_Ekuan.html
http://fearlessreader.blogspot.com/2007/03/unpacking-japanese-lunchbox.html
Beijocas,
Lígia 😉
Brasil da Silva
Tem convocação pra vc no blog. Confere lá!
paulo de tarso
olá lígia
acho que percorri exatamente o caminho ao contrário do seu. sempre fui medíocre, na escola. fui sempre o pior dos alunos. acho que so tirei uma nota dez com mais de 25 anos!!!.
vou ser muito sincero, nunca tive muitas certezas. principalmnte em relação ao design. mas por caminhos tortos acabamos juntos, ou seja estudando muito. acho que um dos nossos privilégios é exatamente este a leitura.
nas palestras que faço, costumo dizer o seguinte: se vc tiver trigo e água, vc faz duas coisas, pão duro e hóstia. um não alimenta e outro não redime pecado. portanto no repertório está a chave das coisas que fazemos. quando vc não tem certezas(bem algumas temos que ter não é verdade) a busca incessante pelo conhecimento é maior.
assim se vc tem alho cebola temperos, vc pode fazer o que quiser. com o design e outras coisas tbém.
outra coisa que gosto são erros, aprendo mais com eles do que com meus acertos. os erros permitem revisar nossas visão, nossas atitude frente ao design e aprimorar. lembre-se a forma segue a falha!
é mais uma coisa, não acredito muito em”verdade”, mas sim em verdades, dado que elas podem ser muitas.
grande abraço.
paulo de tarso
Renata Rubim
Marcelo, a entrevista do Ferlauto com Kenji é a que eu mostrei, que tenho guardada impressa.
Quando eu escrevi ” é só um comecinho” quis dizer que era só uma micro amostra da imensa visão budista sobre as coisas da vida.
Abraço,
Renata
Marcelo Kunde
ok. Obrigado Renata.
com toda certeza é uma ponta de alfinete na imensidão do mundo budista.
mas no contexto, pensei que poderia ser da entrevista.
Abssss
FELIPE WAGNER ANDRADE ABREU
Sinto exatamente a mesma coisa, tenho formação em engenharia e pós em marketing
Enerji Performansı
I am grateful for you and your generosity.