Pessoas invisíveis

Já faz um tempo recebi uma mensagem que me deixou comovida. Como a recebi de vários endereços diferentes, é possível que você também já a tenha lido, ainda mais porque, pesquisando no Google, descobri que a história é verdadeira e o texto é de 2004.

O caso é o seguinte: Fernando Braga da Costa, por sugestão de seu orientador de Mestrado em Psicologia, resolveu trabalhar como gari na própria universidade onde estudava para entender como esses profissionais eram vistos pela sociedade. Eis a conclusão, após 8 anos trabalhando na função: eles não são vistos.

A primeira coisa que Fernando observou é que mesmo fazendo tudo direitinho e vestindo o uniforme igual a todos eles, os colegas logo notaram que o moço era um estranho no ninho. A cor da pele, a postura, a maneira de falar, o olhar, tudo era diferente. Mesmo assim, ele não foi rejeitado. Pelo contrário; de alguma maneira, os garis da sua equipe o protegiam, reservavam para ele os trabalhos mais leves. Nunca chegaram a conversar sobre porque Fernando estava fazendo aquele trabalho, mas aos poucos ele conseguiu se integrar completamente ao grupo e até a fazer grandes amigos.

O fato é que o pesquisador constatou, emocionado, que as mesmas pessoas que o abraçavam e lhe davam a maior atenção quando ele estava em trajes “normais”, ignoravam-no completamente quando ele estava de uniforme e vassoura na mão. Não, ele não andava disfarçado ou coisa do tipo. É que os colegas não tinham como reconhecer Fernando, pois nunca olhavam os rostos dos garis. Era como se ele não existisse. Algo como uma versão contemporânea de Grenouille, personagem do memorável livro “O perfume” (Patrick Süskind) que não tinha cheiro, portanto nunca era notado. Tipos perfeitos e acabados de homens invisíveis.

Fernando concluiu que os profissionais que fazem serviços gerais, principalmente os trabalhadores braçais, são completamente ignorados. Ele conta que várias vezes conhecidos passavam muito perto, chegavam a esbarrar nele e nem ao menos se desculpavam. Desviavam do “obstáculo” como se fosse um poste, um orelhão. O povo do braço é considerado equipamento, objeto, parte da paisagem.

Fiquei pensando: será que a gente trata mesmo as pessoas assim? Todo o carinho do mundo para os nossos pares, o completo desprezo pelos que não são “da nossa classe”?

Quando um designer vai projetar um ponto de ônibus, será que ele considera a opinião dos garis? Das pessoas que montam a estrutura? Dos motoristas e cobradores? Ou apenas entrevista quem está esperando a condução?

Quando um publicitário vai fazer uma campanha para a prevenção da dengue, será que ele conversa antes com um varredor de rua? Quando faz um comercial de um banco, conversa com os vigilantes? Eles passam despercebidos mas vêem tudo de uma maneira que só os invisíveis conseguem, não se esqueça.

Quando um palestrante vai falar sobre alimentação saudável, será que ele troca uma idéia com o rapaz que carrega aquelas caixas pesadíssimas de verduras e frutas no Ceasa? Ou o pessoal do supermercado que arruma as maçãs? A moça que cuida da balança?

Você dá bom dia e sabe o nome do porteiro do seu prédio? Já bateu um papinho com o frentista do posto de gasolina? Cumprimenta e deseja bom trabalho ao manobrista do estacionamento? Sabe alguma coisa sobre a senhora que limpa o seu escritório? Lembra do rosto do cobrador do ônibus que você pega todo dia?

Eu sei, às vezes a gente não cumprimenta por timidez, não é desprezo (pressa não é desculpa, pois um sorriso não toma tempo nenhum). Mas pode ser interpretado assim, então é melhor ter mais cuidado. O Fernando publicou seu trabalho em 2004 e o livro se chama “Homens invisíveis”. Será que não devia ser leitura obrigatória nas empresas, nas escolas e, principalmente, nos cursos MBA?

Aliás, sobre o MBA, tem até uma historinha que circula por aí em que o professor diz que vai ter prova surpresa e a única pergunta é o nome do porteiro da escola. Um aluno pergunta se está valendo nota e ele diz que sim. Pois os alunos foram todos reprovados e me parece que o MBA era de RH, veja só como são as coisas…

Pois é, talvez a gente tenha que rever nossos hábitos. Se não para ser pessoas melhores, ao menos para ser profissionais mais capazes.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

***

Publicado originalmente em abril de 2008.

9 Responses

  1. 28 abril 2011 at 10:39 am

    Mais um ótimo post, Lígia.

    Concordo com você que falar que está sem tempo para coisas como um “bom dia” é um absurdo, faz parte de uma rotina.
    Essas coisas vem se perdendo ao longo do tempo, ainda não compreendi se é uma coisa de criação ou de cultura de uma certa região.

    O fato é que de maneira geral as pessoas estão acostumadas (ou não sei a melhor palavra) a ”desprezarem” o que é “diferente ou não faz parte do seu meio social”.
    É uma resposta malcriada ao trocador/motorista de ônibus, é um tratamento inferior a secretária do lar (moça da faxina), é um olhar reprovado a ‘tia da cantina’ pela demora no atendimento e etc.

    Tive uma criação onde fui educada a não importa o ambiente em que eu entre, não importa a pessoa desejar as comuns frases de bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, por favor, obrigado. Desde então a faço. Ainda assim não recebo resposta, acredita?

    Lembro ainda que na época de colégio ainda o estranhamento de seguranças, recepcionistas, auxiliares de limpeza uma vez em que no meu 3º ano do Ensino Médio visitamos uma faculdade num desses programas de “Conheça a ‘insira a universidade'” e eu os comprimentava. Até os mesmos estranharam diante de tanta gente passando e os ignorando.

    Lembro também em uma viagem a SP, onde desejei boa tarde na compra do bilhete no metrô e agradeci, a atendente me olhou com um olhar diferente e falou: nossa que educação!
    Quantas pessoas devem passar por aquela atendente e apenas pedir o bilhete, diariamente?

    São pequenos gestos que fazem diferença.
    E isso influencia no nosso papel de designer (ou qualquer profissão) a pensar em soluções melhores para a sociedade.

    Bjs

  2. Andre Luis Orthey
    Responder
    28 abril 2011 at 11:16 am

    O que deveria ser normal é exceção.
    Este ano comecei a trabalhar em outro emprego e ao passar pela pessoa que fazia a limpeza do corredor lhe desejei bom dia. Ela me olhou com tanta surpresa pelo fato de eu ter falado com ela que nem mesmo respondeu.
    Ao observar como as pessoas passavam por ela sem cumprimentá-la é que entendi a razão da surpresa.

    O que deveria ser normal… virou exceção!

    Abs!

  3. 28 abril 2011 at 2:47 pm

    É mesmo. Os que têm educação é que são os esquisitos no mundo de hoje, mas é claro que ainda podemos mudar isso, destacando sempre e de muitas formas os educados, para que virem “espelhos”.

  4. 29 abril 2011 at 4:14 pm

    “O peixe morre pela boca” Dito popular.

    “Criamos uma sociedade onde tudo tem um preço e poucas coisas tem realmente valor.” Jacques Cousteau.
    …………………………………………………………………………….
    Somos todos responsáveis pelo modelo de sociedade vigente.

    Uma sociedade que norteia seus valores apenas pelos índices econômicos, desprezando os valores éticos para alcançar seus objetivos, poderia resultar em quê?

    Fomos doutrinados e doutrinamos nossas crianças desde cedo nas “escolas” para se tornarem “cidadãos esclarecidos e comportados, competitivos, produtivos, e bons consumidores”.

    “Estudem, e trabalhem para ser alguém na vida, meus filhos.”

    A “classe média” é marionete do capitalismo, aprisionada na inversão de valores, no falso “padrão qualidade de vida”, onde o clichê “Ter é mais importante que Ser” se fazendo presente, não poderia gerar outro resultado.

    Líderes religiosos e governantes ambiciosos e mal qualificados que não praticam o que pregam, legisladores sem compaixão que criam leis que os tornam impunes à elas, economistas inescrupulosos que decidem o “Risco Brasil” apenas para defender seus empregos, formadores de opinião vaidosos e vulgares transmitindo seus falsos valores para a população vazia e ávida de alguém que lhes diga como agir, professores que trabalham apenas por causa do salário e usam a profissão e os alunos como pára-raios, alunos que vêem seus professores como inimigos ou serviçais, intelectuais interessados apenas em demonstrar “cultura erudita e cosmética” que não transforma para melhor a sociedade, ao contrário, a mantém alienada e ocupada, pensando que celulares, toda a parafernália eletrônica e carros são as coisas mais importantes do mundo, famílias desestruturadas pela falta de Amor nos lares, enfim, seres humanos materialistas, voltados apenas para a luta pela sobrevivência diária, em detrimento da formação moral, ética, não poderia nos levar à outro lugar!

    Cada nação tem os líderes que merece e vice-versa! Somos todos co-cr iadores do que estamos vivenciando! E isso é regido pela Lei de Causa e Efeito, Ação e Reação!

    Enquanto norteamos nossas vidas por contas bancárias, seremos esse fracasso que se vê estampado em todas as mídias.

    O que deveria ser regra é exceção e vice-versa. Para sair desse círculo vicioso, só mudando os valores do ser humano enquanto coletivo para uma direção em que os princípios espirituais (não religiosos) sejam mais importantes que os interesses pessoais.

    Não se preenche vazio existencial com sucesso material.
    ………………………………………………………………………
    P.S.: Adoro teus “espaço virtuais”, trazem conteúdo à este vazio tão cheio de vazios

  5. 30 abril 2011 at 7:58 pm

    Ótimo, Ligia, ótimo! Maravilha. Vou postar no Twitter.
    Beijos,
    Renata

  6. Raniere
    Responder
    30 abril 2011 at 8:03 pm

    “Conectar computadores é um trabalho. Conectar pessoas é uma arte.”
    (Eckart Wintzen)

    Muitas vezes temos centenas de amigos nas redes sociais e passamos o dia isolados, sem amigos reais.

  7. 4 maio 2011 at 8:44 am

    Oi Ligia! Muito bom o texto.. emocionante. Postei ele na íntegra no meu blog, com seus créditos.
    Abraços..

  8. ILZA CORDEIRO.
    Responder
    20 setembro 2012 at 4:48 pm

    ACABEI DE LER AGORA O TEXTO DE FERNANDO BRAGA, AO DIGITAR NO GOOGLE A FRASE “PESSOAS INVISÍVEIS” E ENCONTREI DEPOIS O SEU COMENTÁRIO E UMA PARTE MAIOR DO TEXTO DE FERNANDO, E COMO VOCÊ, TAMBÉM FIQUEI COMOVIDA E ACHEI SURPREENDENTE E DE UMA RIQUEZA SENTIMENTAL MUITO GRANDE, AGRADEÇO. UM FORTE ABRAÇO EM AMBOS.

    • ligiafascioni
      Responder
      20 setembro 2012 at 5:02 pm

      Pois é, Ilza. O estudo dele já tem tanto tempo e as pessoas não mudaram nada. Ainda vou escrever mais a respeito; tenho uma teoria….
      Abraços e volte sempre!

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