Interessante notar como os livros vêm parar nas minhas mãos; “The Ministry of the Future”, de Kim Stanley Robinson, foi uma maravilhosa surpresa. Nunca tinha ouvido falar nesse premiadíssimo autor e nem sabia que essa obra era tão celebrada. Publicada em 2020, apareceu na lista dos livros favoritos de ninguém menos que Barak Obama.
Pois olha só que coisa; fiz uma viagem de trem longa (mais de 7 horas) e toda vez que ia ao banheiro, passava por uma mulher com a cara enfiada num tijolo. Não sei vocês, mas tenho uma curiosidade incontrolável para saber o que as pessoas estão lendo. Fiz de tudo, mas não conseguia descobrir. Pois ao me levantar para descer do trem (estava quase planejando esbarrar na mulher para ela deixar cair o livro), passo pela mesa dela e vejo o título (ela estava pegando a mala e o livro estava fechado). Como uma criminosa, fiz uma foto rapidão com meu telefone para descobrir mais depois.
Comprei o danado e penso que você devia fazer o mesmo. Veja por quê.
O livro tem 106 capítulos, narrados por diferentes personagens. Há refugiados, moradores de regiões diferentes do planeta, cientistas, e até conceitos e objetos. Mas os dois protagonistas da história são Frank e Mary.
No primeiro capítulo, narrado em terceira pessoa, ficamos conhecendo Frank. Ele é nepalês e trabalha como voluntário numa cidade na Índia. Eis que um belo dia, o calor vai aumentando mais e mais, até que a temperatura do bulbo úmido ultrapassa o máximo suportado pelo ser humano (o valor teórico é 35 oC). O negócio funciona mais ou menos assim: o mecanismo que o corpo humano usa para regular a temperatura interna no calor é o suor. O corpo coloca líquido para fora e, quando ele evapora, a temperatura interna cai.
O limite da temperatura do bulbo úmido é quando o suor não consegue mais evaporar por causa da alta temperatura combinada com a alta umidade do ar. E sabe o que acontece a partir disso? Como o corpo não tem mais como regular a temperatura, ele simplesmente vai cozinhando por dentro até a pessoa morrer.
Na história, a onda mortal de calor acontece em 2025 e mata milhões de pessoas. Frank está no trabalho quando a energia elétrica acaba; o gerador consegue manter o ar condicionado por apenas algumas horas (ele leva as pessoas da rua para dentro, que está mais fresco e seco), mas logo se esgota. Começa a faltar água, as pessoas vão morrendo como passarinhos. O cenário apocalíptico termina com ele sendo o único sobrevivente resgatado da água quente do lago da cidade, como uma sopa de cadáveres humanos.
Alarmista demais? Pois saiba que esse ano (maio de 2022, portanto 2 anos antes do livro ser publicado), a temperatura do bulbo úmido chegou a 33,1 oC na Índia e no Paquistão. Assustador, né? Pois o livro todo é assim; uma ficção assustadoramente realista.
Na história, o mundo todo fica alarmado, mas, como diz o autor, é meio como quando acontece um massacre nos Estados Unidos provocado por algum maluco armado. Todo mundo se choca, fica de luto, mas imediatamente fica esquecido até o próximo evento. Aí a coisa se repete até se tornar o novo normal.
Nesse mesmo ano da onda de calor (2025), meses antes, o Acordo de Paris cria um corpo diplomático para tratar das mudanças climáticas e liderar as ações necessárias para mitigar as consequências e prevenir estragos maiores. Alguém na imprensa chamou a equipe de “Ministério do Futuro”.
É então que ficamos conhecendo Mary Murphy, a ex-Ministra de Relações Exteriores da Irlanda. Ela tem 45 anos de idade, é viúva, competentíssima e tem um desafio gigante pela frente: salvar o mundo por meio da diplomacia.
Mary mora e trabalha em Zurique, sede do Ministério, e tem uma equipe multidisciplinar talentosa e idealista. Os biólogos, especialistas em computação, economistas, geógrafos, glaciologistas, agrônomos, enfim, cientistas de todas as áreas, passam o tempo todo pensando em soluções para tentar recuperar a parte do planeta que está detonada e evitar que ainda mais se estrague.
As dificuldades são inúmeras, pois envolvem poder e dinheiro. E os gananciosos têm visão de curto prazo; contanto que ganhem agora, estão pouco se lixando se vai ter planeta para seus filhos. Até porque os maiores prejudicados são os países pobres, com menos infraestrutura para as catástrofes ambientais.
Um exemplo é quando Mary visita a baía de San Francisco, nos Estados Unidos. Os cientistas lá bolaram um jeito de armazenar toda a água que causaria enchentes devastadoras para a cidade (cada vez mais frequentes e imprevisíveis) usando um sistema complexo e caro. Essa água é usada nos períodos de seca extrema (também cada vez mais frequentes e imprevisíveis). Resumindo, a vida nesse lugar mudou um pouco, claro, mas não a ponto de tirar o conforto de seus moradores. Tecnologia e muito dinheiro nos coloca em bolhas. E o resto do mundo que lide com isso…
O livro vai contando o trabalho do ministério paralela à trajetória de Frank, que luta contra o stress pós-traumático que o deixou emocionalmente instável.
Frank vive para ajudar as pessoas; viu a tragédia acontecer de perto e vê que não vai parar por aí se nada for feito. Até que um dia ele sequestra Mary. O encontro dos dois é carregado de tensão e emoção, pois ambos querem a mesma coisa, só que por caminhos diferentes. Mary diz que está fazendo o melhor que pode, mas Frank diz que não é o suficiente. Ninguém está fazendo o suficiente. Ele acaba escapando e Mary sofre atentados de outras organizações, mas fica muito impactada.
O autor vai narrando um futuro não muito distante e nem muito fantasioso. O Ministério cria uma moeda usando blockchain para compensar quem evita a emissão de carbono e há uma explicação bem completa sobre os mecanismos econômicos, as dificuldades envolvidas e as reuniões dela com a equipe e depois tentando convencer os maiores bancos do mundo a entrar na empreitada.
Ativistas organizados mais radicais usam esquadrilhas de drones para derrubar aviões e afundar navios cargueiros em massa (a partir daí quase ninguém mais voa e nem navega em segurança; o que força o desenvolvimento urgente de mecanismos mais sustentáveis e limpos); eles também assassinam magnatas do petróleo e minérios, forçando a busca urgente soluções menos danosas ao ambiente.
É claro que essa visão é romantizada e acho muito difícil que funcionasse na vida real, mas a guerra da Rússia com a Ucrânia, por exemplo, que vai deixar toda a Europa sem gás no próximo inverno, pode ser o empurrão que faltava para finalmente se investir para acelerar as pesquisas com fontes de energia alternativas de maneira urgente/urgentíssima. Veremos…
Na história, a população do planeta também diminui consideravelmente por conta de todos os desastres e há um aumento absurdo de refugiados climáticos (alguns capítulos são inclusive narrados em primeira pessoa por alguns deles).
A descrição é bem realista na questão da guerra de poderes e do dinheiro, da diferença de abordagem pelos países e culturas e descreve a evolução da situação ao redor do mundo.
Inclusive tive uma surpresa; na página 342 do livro, o governo brasileiro de extrema direita que está destruindo a Amazônia acaba renunciando e é preso por corrupção. Lula (ele cita o nome!) assume e promete um governo focado em energia limpa num programa chamado Clean Brazil (Tradução livre: “Brasil Limpo”). Pela proteção da floresta e dos grupos indígenas, o país é compensado financeiramente com a moeda criada pelo Ministério do Futuro e pode fazer mais investimentos pela preservação. Chega num ponto em que o país para de produzir e comercializar petróleo, seguindo a Arábia Saudita.
Descrevendo assim fica bem simplista, mas o arcabouço econômico parece bem fundamentado (eu é que não entendo o suficiente de economia para compreender bem os detalhes).
Bom, a história segue por mais algumas décadas até a aposentadoria de Mary e a morte de Frank (eles acabam virando amigos).
Como disse, é assustadoramente realista e próximo demais na linha do tempo.
Acho que vale muito a pena a leitura (inclusive pelo tanto que a gente aprende nas várias áreas de pesquisa e com relação à sustentabilidade ambiental). O autor tem muitas ideias boas para resolver o problema.
Uma ficção científica bem soft do ponto de vista de tecnologias radicais, mas não menos imaginativa.
Pena que ainda não existe em português, mas fica a dica. Vale muito, mas muito a pena. Mesmo.
Se você lê em inglês, olha aqui o link!
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