Entrei no feriado de carnaval decidida a dormir muito, namorar bastante, dar um jeito no caos que se instalou na minha área de serviço e trabalhar no meu livro, não necessariamente nessa ordem. Adoro um samba, mas por ser muito branca e muito magra, acabo me sentindo uma gringa desajeitada — além do mais, precisava muito descansar e colocar a vida em ordem.
Mas eis que em pleno domingo de carnaval recebo uma ligação de alguém da prefeitura de Florianópolis fazendo um tão irresistível quanto inusitado convite para fazer parte do corpo de jurados do desfile das escolas de samba que aconteceria naquele mesmo dia à noite. Ah, e me fez jurar confidencialidade para que a notícia não vazasse e eu não fosse assediada por nenhuma das escolas. Só não perguntei se era trote porque não tive oportunidade: o sujeito passou quase uma hora num discurso ininterrupto sobre a mecânica da coisa e sobre como a cidade agradecia e necessitava da minha importante participação (como recusar?).
Ora, sou adepta da linha de pensamento “colabore com o seu biógrafo”. Nem precisava ter se empenhado tanto no convite, já que era justamente isso que ainda faltava no meu currículo!
Para mim permanece sendo um mistério como é que meu nome foi parar lá na comissão organizadora do carnaval, logo eu, uma pessoa tão pouco carnavalesca. Só fiquei um pouco receosa de cometer injustiças por ignorância, pois sei que escola de samba é assunto muito sério para quem está lá desfilando. Mas me acalmei quando a organização me forneceu dois calhamaços que me fizeram companhia na tarde de domingo: o “Manual do jurado” e o “Book das escolas de samba”.
No primeiro volume havia detalhes sobre quais critérios eu deveria me concentrar no julgamento (como o meu quesito era alegoria e adereços, tinha que abstrair todo o resto, ou seja, não deixar me influenciar pela fantasia ou a bateria, já que havia outras pessoas julgando isso). Era para julgar a originalidade, a adequação ao enredo, o acabamento e a concepção dos carros e adereços.
No segundo maço de papéis havia um histórico resumido de cada escola e um relatório orientativo nada resumido sobre o enredo. Finalmente entendi de onde é que os comentaristas da Globo tiram toda aquela erudição que vão desenrolando durante o desfile das escolas do Rio. Está tudo no tal “book”. Lá você fica sabendo que o casal de mestre-sala e porta-bandeira irá “demonstrar a força pujante da produção de energia através das águas”, que o destaque central do carro com o beija-flor gigante é chamado “Mística dos carijós” rodeado pelas “índias do primeiro encontro” e que a sexta ala se chama “Sete raios visíveis do sol” obviamente porque representa a luz divina do criador sob a forma de pedras preciosas.
Reunidos num hotel e secretamente transportados até a passarela do samba “Nego Quirido”, lá fomos nós, os jurados. Não se pode dizer que foi uma noite entediante; meus olhos se fartaram com o banquete.
O camarote era de uma simplicidade franciscana, com desconfortáveis cadeiras de plástico e salgadinhos requentados. Coca-cola e água também foram servidos. Bebida alcóolica não, pois estávamos a serviço do povo florianopolitano (ponto para a prefeitura; ficaria muito chateada se visse dinheiro público sendo desperdiçado em camarotes nababescos). Só podíamos ir ao banheiro químico acompanhados de uma fiscal. Telefone celular, nem pensar.
Depois de muitas delongas e homenagens dispensáveis, o espetáculo finalmente começou. Desnecessário detalhar a orgia estética que se desenhou, a festa das cores e dos sons, a empolgação, o gosto duvidoso convivendo em harmonia com soluções plásticas criativas e geniais, o coração batendo junto com a bateria. E eu tendo que fazer o supremo sacrifício de derramar o olhar, curtir cada detalhe dos carros alegóricos…
Valeu o frio (estive à beira de uma hipotermia), valeu o sono, o cansaço e o desconforto. Foi uma noite única, para guardar na memória. Amei a experiência, só não gostei de uma coisa: jurado não pode se emocionar, não pode sorrir, não pode sambar, não pode acenar, não pode dar bandeira, não pode cair na folia, não pode fazer cara de feliz, não pode demonstrar que está gostando. É contra as regras.
Descobri que isso não é pra mim não. Não sei ser sem me deslumbrar.
Clotilde♥Fascioni
Momento inesquecível mesmo.
Clotilde♥Fascioni
Uma informação que também não sabia, talvez por que estamos sempre “em transito”.
“Nego Quirido”(isso mesmo, do jeito que fala) é uma homenagem a um empregado da família Daux e por eles muito querido, que respirava carnaval o ano todo, tanto que foi homenageado, não com seu nome,provavelmente porque era desconhcido da maioria, mas pelo seu apelido; como era conhecido: NEGO QUIRIDO.
(caranval também é cultura)
Alexandre Müller
Muito bom. Vi seu site através do Confraria Empresarial, fui aluno da Beth à alguns anos atrás. Fiquei fuçando, fuçando e fuçando e acabei por vir para o seu Blog e confesso, que delícia ler os textos que você escreve.
Esse em particular me faz fazer um questionamento, você não poderia demostrar emoção, mas o batucar das emoções que são passadas não fazia o “pezinho” ficar saltitante?
Parabéns pelo lindo trabalho.
Alexandre Müller
ligiafascioni
Aahahahah… não só os pezinhos, Alexandre! O Coração também pula junto com a bateria. Não tem como ficar imune ao batuque…eheheheheh
Abraços e volte sempre!!