Como imaginar o mundo do trabalho na era da Inteligência Artificial? Dois executivos da Accenture, Paul Daugherty e James Wilson fizeram uma belíssima pesquisa e econtraram vários insights. O resultado está publicado em “Human + Machine: Reimagining Work in the Age of AI“, publicado em 2018 pela Harvard Business Review Press.
O título do livro já é uma brincadeira, pois normalmente a gente vê a dicotomia Humanos X Máquinas. Os autores giraram um pouco o x e o transformaram em +. Achei genial!
Eles começam explicando as três ondas da transformação dos negócios.
A primeira onda tratou de padronizar os processos. Um grande ícone dessa onda é Henry Ford, que repensou toda a produção em escala de uma linha de montagem. Cada parte do processo era medido, otimizado e padronizado para ganhar eficiência.
A segunda onda consistiu em automatizar processos. Começou nos anos 1970 e teve seu pico em 1990 com o movimento de reengenharia. Com o advento da tecnologia da informação e os computadores pessoais, máquinas, bases de dados e softwares, algumas empresas puderam se reinventar usando esses novos recursos.
Estamos agora passando pela terceira onda, que envolve adaptar processos. Ela é muito mais dramática porque é peciso reimaginar todos os processos para serem mais rápidos, flexíveis e adaptáveis a comportamentos, preferências e necessidades dos trabalhadores.
Sobre a polêmica humanos versus máquinas, os autores apresentam um quadro muito interessante: o meio perdido.
Fiz uma versão própria mais simplificada, que mostra a intersecção entre as tarefas exclusivas de máquinas e de humanos, inspirada na descrição dos autores.
O meio, a que eles se referem, é a intersecção entre as atividades de cada parte, híbridas e compartilhadas entre humanos e máquinas.
Mas vamos entender cada uma das partes do esquema.
Atividades exclusivas dos humanos
As máquinas não conseguem realizar (pelo menos ainda) as atividades consideradas exclusivamente humanas como liderar, empatizar, criar e julgar outros humanos (se bem que há vários exemplos de previsões de julgamentos realizados por máquinas; mas no caso da tabela, os autores se referem a julgamentos que levam em consideração emoções e empatia, não apenas o lado racional). Essa questão de decisões legais realizadas por máquinas ainda é bastante polêmica, mas em alguns casos os algoritmos podem ser excelentes referências.
Com relação à criatividade, esse tem sido um tema constante entre os estudiosos. Há algoritmos para escrever canções, imitar estilos de grandes pintores e ajudar nas decisões criativas em um set de filmagem, por exemplo. Os programas tentam entender os critérios que os humanos usam para gostar de determinadas obras e usam como apoio para a tomada de decisão.
O Watson (o famoso robô da IBM), conseguiu, em 2016, criar o trailer para um filme de terror da Century Fox (Morgan) analisando o visual, o som e a composição de centenas de trailers de filmes de terror a fim de identificar padrões. Com base nisso, Watson selecionou as cenas que iriam para o trailer, reduzindo semanas de trabalho exaustivo.
John Smith, que gerenciou todo o projeto, faz, porém, uma ressalva: “É fácil para a Inteligência Artificial criar alguma coisa nova aleatoriamente. Mas é muito difícil criar alguma coisa nova, inesperada e útil”.
Os algoritmos, então, seriam ferramentas úteis para substituir profissionais medianos, que se baseiam em gostos mais populares e comuns para criar peças, sejam pinturas, músicas, esculturas, ilustrações ou vídeos. Ou para auxiliar os trabalhos mais demorados e acelerar protótipos.
Mas criar algo realmente original, brilhante e inesperado, que se transforme em uma experiência memorável, ainda são necessários talentos exclusivamente humanos.
Inclusive, uma das tendências apontadas para futuros trabalhos dominados por humanos é o setor de entretenimento. Se as pessoas terão mais tempo livre, mas tempo também terão de pensar sobre a vida, de ouvir música, visitar exposições, assistir filmes, ver peças de teatro. O Coronavírus está aí para mostrar o quanto a interação humana é importante e que sem arte, a vida fica pobre e insustentável.
A arte fala sobre o ser humano, seus dilemas, dúvidas, crises existenciais, emoções e sentimentos. O que nos faz humanos, em suma, é a capacidade que temos de fazer (e apreciar) a arte. Essa parte não tem como ser assumida por uma máquina.
Atividades exclusivas das máquinas
Tarefas rotineiras, insalubres e que exigem uma formidável memória (base de dados comparativa) ou capacidade de processamento (muitos cálculos ou pesquisas/comparações por segundo), podem ser realizadas com facilidade somente por máquinas com grandes vantagens para os humanos: transacionar (no sentido de realizar transações entre diferentes equipamentos), interar (repetir operações sucessiva e repetidamente em grande volume), predizer (com base em dados históricos) e adaptar (ajustar automaticamente os procedimentos com base nas informações de entrada).
O meio perdido: humanos e máquinas colaborando
As atividades híbridas, onde ocorre a colaboração entre o homem e a máquina, sintetizam a a ideia principal. Os autores comentam que basicamente a literatura e a filmografia de ficção científica sempre colocam as máquinas inteligentes contra os humanos, ameçando não apenas seu trabalho, como também sua existência. Na vida real, segundo eles, o que as máquinas mais fazem é ajudar nas tarefas repetitivas e amplificar as habilidades humanas, colaborando com ganhos de produtividade antes impossíveis. Se a gente for pensar, é bem verdade. Todos os meios de produção e a maior parte dos serviços ganham com a colaboração das máquinas.
Quando eles falam no “O Meio Perdido” (“the missing middle” no original) referem-se justamente a esse espaço de colaboração. O “perdido” é porque poucos falam a respeito, preferindo concentrar-se nos extremos, em que as atividades são exclusivas de um ou de outro.
Nesse “meio perdido”, os humanos trabalharão com máquinas inteligentes para explorar o melhor de cada parte. São os humanos, por exemplo, que desenvolvem, treinam e gerenciam as aplicações de inteligência artificial.
Além disso, há outro tipo de colaboração, em que a inteligência artificial pode amplificar os sentidos humanos transformando-os quase que em superpoderes; há inúmeros exemplos já em funcionamento, como exoesqueletos para pessoas com mobilidade reduzida, visão aumentada em instrumentos que conseguem enxergar veias através da pele, realidade aumentada, que mostra o resultado holográfico de uma cirurgia durante o procedimento; enfim, há muitas possibilidades.
A tecnologia também é útil para facilitar a interação entre humanos; pessoas com algum tipo de deficiência podem utilizar dispositivos físicos controlados pelo cérebro para se comunicar, bem como a incorporação de sensores e atuadores dentro do próprio organismo.
Em boa parte dos casos, quando as máquinas são usadas para liberar os humanos de tarefas repetitivas, aumenta o tempo disponível para as pessoas criarem, trabalhando mais como humanos e menos como robôs.
Os autores mostram que nas fábricas automatizadas com Inteligência Artificial, basta que se treine um robô para uma tarefa; todo o aprendizado dele é automaticamente repassado para os outros, com enorme economia de tempo de recursos. Eles também podem se comunicar entre si para tomar decisões que otimizem a produção e assumir tarefas de outros no caso de alguma pane. O compartilhamento das informações entre as máquinas e a tomada de decisão puramente racional é uma vantagem enorme para a produtividade. Por outro lado, deixa para os humanos as decisões mais complexas, que envolvem fatores emocionais e variáveis que os robôs não conseguem entender.
As máquinas podem tornar o trânsito mais seguro dirigindo veículos (tanto para o transporte de humanos como de cargas), além de aumentar a eficiência; podem melhorar a cadeia de suprimentos integrando esses veículos aos sistemas de logística.
A questão é que ainda há muitos humanos tentando trabalhar como robôs (muitas vezes, seguindo instruções de outros humanos, que também tentam imitar robôs).
Mesmo para tarefas como desenvolvimento e pesquisa científicas, os algoritmos podem ajudar a decidir que caminho seguir frente às inúmeras possibilidades. Isaac Asimov tem uma frase que resume bem: “a frase mais excitante de se ouvir na ciência não é “Heureka!”, mas “que coisa engraçada/estranha…”.
Enquanto os pesquisadores humanos são muito bons em insights criativos, as máquinas são melhores na organização e visualização de dados, especialmente em grandes volumes. Com a ajuda delas, os pesquisadores podem formular novas e interessantes hipóteses que poderiam ter passado despercebidas sem ajuda. Experimentos podem ser simulados no computador antes de serem testados na vida real, economizando um tempo precioso.
Os líderes precisam reimaginar os processos
o autores apresentam cinco passos que podem ajudar os líderes a integrarem a inteligência artificial em seus processos sem traumas e com melhor aproveitamento nas tarefas híbridas. Eles baseiam esses cindo passos no que eles chamam de cinco princípios MELD, onde:
Mindset: o líder deve assumir uma abordagem radical reimaginando os processos em que as máquinas colaboram com os humanos dando a eles superpoderes. Nesse momento a co-criação e o compartilhamento de informações é muito importante.
Experimentation: o líder deve observar ativamente os processos para testar a colaboração da Inteligência Artificial, aprendendo e escalando na perspectiva do meio perdido.
Leadership: o líder deve imaginar e nutrir uma cultura de colaboração entre máquinas e pessoas, mas comprometendo-se com o uso responsável, legal e ético da IA desde o início.
Data: O líder deve construir uma base de dados consistente e robusta para alimentar os sistemas inteligentes.
Skills: O líder deve desenvolver em si e nos colaboradores oito novas habilidades para a fusão com a Inteligência Artificial. São elas:
- Re-humanização dos times: Trata-se de aumentar a capacidade de fazer interações interpessoais e criativas.
- Normalização das responsabilidades: a responsabilizade pelo proósito e pela percepção da interação entre os humanos e as máquinas é dos indivíduos, empresas e socidade.
- Integração do julgamento: é a habilidade de tomar decisões pela máquina quando ela não tem uma definição clara sobre como proceder.
- Interrogação inteligente: desenvolver a habilidade de fazer perguntas para a IA com níveis de abstração adequados aos insights que se quer obter.
- Empowerment baseado em robôs: trabalhar em harmonia com a IA para ampliar as capacidades e criar superpoderes nos processos e nas carreiras profissionais.
- Fusão holística: habilidade de desenvolver um modelo mental robusto para aprimorar processos com a ajuda da IA.
- Aprendizado recíproco: é a habilidade de performar tarefas em conjunto com a IA de maneira que tanto o sistema como o colaborador possam aprender.
- Reimaginação implacável: a habilidade de se disciplinar rigorosamente para recriar novos processos e modelos de negócios a partir do zero e não apenas automatizar os que já existem.
Como se pode ver, o caminho é longo, mas já começou a ser desenhado.
Recomendo fortemente uma leitura dedicada dessa obra.
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