Face amarela

Achei esse livro porque estava sendo recomendado em vários lugares; desde o Goodreads até clubes do livro, lista de Best Sellers do NY Times e do The Guardian, indicações de outros autores bem cotados e famosos, incluindo o algoritmo da Amazon, que não para de me mostrar a capa (linda, por sinal). Um verdadeiro bombardeio, não tinha como ignorar. Pois sabe o que mais? Esse livro é praticamente um meta-livro. Eu explico.

Yellow Face”, da sino-americana de raízes chinesas R. F. Kuang conta a história de June Hayward, uma garota americana que ama escrever e sonha em ser romancista, e sua amiga desde os tempos de escola, Athena Liu.

Athena é tudo o que June sempre sonhou: acaba se destacando na universidade e, aos 27 anos, já foi indicada a vários prêmios literários. É tão rica que mal tem noção de como lidar com dinheiro. Parece que ela tem o toque de Midas; tudo o que toca vira ouro. 

June, ao contrário, vê seu primeiro romance, publicado a duras penas, como um fracasso  literário. Vendeu pouco, ninguém se interessou. Nem mesmo seu agente e editor fizeram muito esforço.

June e Athena são amigas, porém rola uma certa distância entre elas. June não consegue evitar a inveja; além de ser um sucesso editorial e uma celebridade, Athena ainda tem aquela aparência etérea das garotas orientais, com seus olhos enigmáticos, seus longos cabelos lisos, seu porte delicado e seu ar blasé. 

June, ao contrário, é só uma americana típica, sem nada de interessante ou original: cabelos e olhos castanhos, corpo comum, assuntos comuns, zero mistério ou exotismo.

Por algum motivo, Athena não tem muitos amigos. Então as duas acabam se encontrando periodicamente. Dessa vez, Athena chamou June porque queria comemorar mais um prêmio. Elas saem para beber e terminam no apartamento de Athena, onde June nunca tinha pisado antes. Num momento em que Athena vai ao banheiro, June, curiosa, inspeciona o estúdio onde a amiga escreve (tudo à mão ou em máquina de escrever, como convém a uma estrela diferentona). June vê anotações, cadernos, enfim; queria que fosse possível adquirir talento por osmose.

Eis que as duas, mortas de fome, resolvem fazer panquecas. E, bêbadas, rindo muito, Athena acaba se engasgando feio, até morrer sufocada. June fica em estado de choque, chama a ambulância e a polícia, faz tudo certinho, mas, antes de sair, não resiste e leva para casa um caderno com o esboço do último romance de Athena.

June chega em casa, lê o manuscrito e fica encantada. Resolve trabalhar arduamente para transformar aquele rascunho num romance de verdade. E ela é realmente talentosa para escrever; o que sempre lhe faltaram foram ideias. Agora que ela tinha um plot, era só trabalhar em cima. 

Conseguiu uma editora e foram meses lapidando a narrativa, eliminando e acrescentando personagens. Mas, claro, ela não conta para ninguém de quem é a ideia original, o que todo mundo acha um pouco estranho, pois o romance que fala sobre trabalhadores chineses que que atuaram na segunda guerra e sofreram maus tratos dos aliados. June pesquisa muito e arduamente para não deixar nenhum furo.

As pessoas desconfiam, pois ela é branca, nada tem a ver com chineses e o escândalo da morte da amiga, sendo ela a única testemunha, começa a gerar burburinhos. 

Mas porque lá no começo eu disse que esse livro parecia, na verdade, um meta-livro? Porque aí a autora começa a explicar toda a operação e a estratégia de marketing para lançar um best-seller, o porquê de alguns temas e autores serem escolhidos numa pretensa opção pela diversidade, os bastidores das negociações com agentes e editoras, o papel importantíssimo das mídias sociais (em especial o renomeado Twitter e o Instagram), o peso das resenhas que influencers fazem em portais como o Goodreads, enfim. Tudo o que rolou nesse mesmo livro que tenho em mãos para fazer dele um sucesso!

Eis que June (que agora mudou o nome artístico para Juniper Song, o que fez algumas pessoas acharem que ela tinha algum ancestral chinês que a tornaria mais “diversa”e seria bom para a publicidade do livro), precisa publicar a próxima obra e aproveitar a onda de visibilidade. Enquanto isso, “The last front” (o tal rascunho da amiga que June aproveita) ganha vários prêmios e bate recordes de vendas, fazendo a autora ganhar muito dinheiro. 

O problema é que junto com o sucesso, aparecem também acusações de plágio, de explorar a morte da amiga, e de racismo, pois June é branca e não asiática (ou amarela). 

A vida dela vira um inferno e June é “cancelada” nas redes sociais. A coisa piora muito no segundo romance, cujo primeiro parágrafo, uma crítica descobre, vem de uma anotação de uma oficina de escrita que ela e Athena participaram há muitos anos. 

Ou seja, mesmo trabalhando muito e, na sua opinião, fazendo jus ao sucesso que está colhendo, June nunca consegue se desvencilhar da sombra da amiga. Sua vida, que sempre foi um pouco solitária (a família não entende, não valoriza e nem acompanha seu trabalho) faz com que ela se torne quase uma eremita. 

Os fantasmas a infernizam a ponto de desequilibrar sua saúde mental e ela se vê no centro de uma discussão sobre racismo, diversidade, cancelamento e plágio, enquanto lida com suas culpas e o fantasma da amiga, que aparece de vez em quando e manda mensagens pelo Twitter e Instagram.

Olha, a discussão não é rasa e não parece haver ninguém santo na história. Athena foi claramente beneficiada porque servia à indústria literária como novidade e diversidade — há muitos escritores igualmente bons que não têm essa oportunidade porque os temas abordados e o perfil etnográfico não estão em voga no momento. Mas ao mesmo tempo que Athena colhe as vantagens, é também aprisionada nessa temática (já vi muito isso acontecer; não permitem que um negro fale de outro assunto que não seja racismo, ou que um transexual foque sua escrita em um tema diferente da sua “condição”.).

Enfim, é um assunto complexo e bastante discutido. Athena, como qualquer ser humano, também tinha seu lado oportunista, de se apropriar de histórias de amigos e conhecidos como se fossem suas. 

A trama vai se desenrolando de uma forma bem envolvente e no final, a pergunta é: será que June vai se livrar do fantasma da amiga, sendo ele real ou não? Quem tem razão: June, o fantasma de Athena, o público, as editoras?

E mais, não posso dizer, para não dar spoiler. 

Se você se interessa pelos bastidores do mundo dos best sellers, recomendo fortemente. 

Foi lançado bem recentemente e ainda não tem tradução para o português, mas se quiser se arriscar no original em inglês, é só clicar aqui para comprar na Amazon do Brasil.

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