Comprei “In every mirror she’s black” (tradução livre: “Em cada espelho ela é negra”), de Lolá Ákínmádé Åkerström, por indicação das minhas queridas e cultas amigas Noemia Colonna, Gabriela da Paz e Michelle Ferreira, numa conversa que tivemos sobre literatura e escritoras negras. Estava também a Ariane de Melo, que por sinal é escritora (ainda vou resenhar os romances dela aqui).
Essas moças não dão palpite furado nunca! Passei vários dias em companhia de três mulheres negras que, por questões diversas, vieram parar em Estocolmo, Suécia (ainda na minha lista para visitar).
Kemi e sua irmã gêmea emigraram da Nigéria para os Estados Unidos para estudar. Kemi tornou-se uma publicitária premiada e de muito sucesso; mas um pouco solitária em sua vida amorosa. Ela também não está muito à vontade em sua atual agência, por conta dos olhares inconvenientes de seu chefe. Eis que um belo dia, ela recebe o convite de uma agência sueca (a maior do país) para ser diretora de diversidade na criação das campanhas. Com vontade de mudar de vida, aceita o desafio.
Muna é uma refugiada que teve toda sua família morta e sua casa destruída na Etiópia aos 16 anos; aos 18 conseguiu ser aceita como refugiada em Estocolmo, onde passou dois anos num abrigo e agora vai dividir uma moradia com mais duas moças etíopes.
Brittany-Rae é filha única de pais jamaicanos; nascida e criada nos Estados Unidos, ela começou a estudar moda quando um designer a convidou para ser modelo, dado o fato de que a moça é esteticamente perfeita a ponto de chamar atenção em todos os lugares pela sua altura, elegância e beleza. Depois de uma tentativa de abuso por conta do tal designer, ela foge e inicia uma carreira de comissária de voo. Atendendo a primeira classe, é seduzida pelo dono da agência de propaganda que veio da Suécia para contratar Kemi.
Bom, logo pensei que as três iriam virar amigas da vida. Pois é, mas essa autora não é óbvia.
Lolá fala muito da solidão de imigrantes em um país europeu (vi semelhanças com a Alemanha em quase todas as descrições), das diferenças culturais, do racismo velado ou não, da dificuldade com a língua.
Ela fala também do tokenismo (eu não conhecia esse termo); trata-se de fazer um esforço superficial ou simbólico para incluir grupos sub-representados em uma empresa (negros, mulheres, gays, trans, pessoas com deficiência, etc). Mas é tudo fachada. Tipo contratar uma mulher negra como a Kemi para uma diretoria, sendo que não há mais nenhum não-sueco nos primeiros escalões da empresa. Ela fica sendo apresentada como um token, ou uma ficha que prova que a empresa “se importa”, que é diversa.
Tem uma expressão, “o negro único” que significa mais ou menos a mesma coisa. Contratam um como se fosse um escudo para se defender das críticas que certamente virão; aquela pessoa acaba representando todas as de sua etnia, como se isso fosse suficiente.
Bom, a Kemi tenta se integrar na empresa, mas é o tempo todo cobrada por não ser fluente em sueco. Ela se destaca brilhantemente numa campanha, mas logo tem suas asinhas cortadas pelo melhor amigo do dono, com a desculpa que ela não conhece a cultura local (ué, mas então por que foi contratada?). Tudo isso sem falar na sexualização, já que Kemi tem uma figura curvilínea que atiça a imaginação dos homens em geral e dos que têm fetiches com mulheres negras em particular.
Brittany acaba engravidando e casando-se com o milionário que a adora como uma deusa, mas age de um modo bem estranho. Por causa da imprensa, não pode expor a família proeminente ao risco de fofocas e vazamentos. Ou seja, ela não pode frequentar festas, fazer academia, sair com amigos, trabalhar ou fazer qualquer coisa que gere notícia. Vive no luxo, mas isoladíssima, inclusive pela família e pelos poucos amigos do marido, que a consideram uma aproveitadora.
Muna é inocente e muito carente; ela tenta desesperadamente se apegar a alguém para ter uma família e amigos, mas nada parece funcionar. Dá muita pena ver o desenrolar da história dela.
É interessante que a autora constrói os personagens com várias camadas. As personagens não são todas santas e corretas; elas têm vaidades, fraquezas e momentos mesquinhos como qualquer ser humano. Não é porque são negras num lugar hostil que se tornam automaticamente parceiras na luta.
Enfim, dá para passear por Estocolmo mesmo sem nunca ter ido lá e vê-la pelos olhos dessas três mulheres admiráveis, cada uma à sua maneira. A visita vale muito a pena. Recomendo.
Pena que ainda não tem em português, mas para quem quiser se arriscar no inglês, tem para vender aqui nesse link.
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