Impossível ver esse livro numa livraria e não levá-lo; “How to Talk to Robots: A Girls’ Guide to a Future Dominated by AI” (tradução livre: “Como falar com robôs: um guia para garotas para um futuro dominado pela Inteligência Artificial”), de Tabitha Goldstaub.
A autora jogou videogames compulsivamente com seu irmão durante toda a infância. Sua mãe era editora de uma revista de moda e seu pai, representante de tecidos. Apesar de fascinada por computadores, acabou virando publicitária. Na universidade sempre procurou disciplinas relacionadas à computação, mas por causa de sua dislexia, acabou desistindo da programação.
Eis que em 2008 a moça começou um estágio numa startup que produzia vídeos para celebridades. Por causa disso, ela decidiu estudar sobre como fazer cada vídeo chegar em cada espectador de maneira mais customizada e que esse trabalho decisório não precisasse ser feito à mão. Ela estudou exaustivamente Inteligência artificial e todas as tecnologias disponíveis para fazer o trabalho que ela queria que fosse automatizado. Tabitha viu que era complicado e acabou não conseguindo financiamento para fazer o negócio se desenvolver.
Foi então que a moça fundou uma startup que conecta especialistas em IA com negócios que queiram utilizar essa tecnologia; ela construiu uma comunidade forte e influente, reconhecida pelo governo britânico.
Entusiasta de primeira hora pelo poder da IA, a preocupação da moça agora é que as mulheres reconheçam que essa tecnologia pode mudar as regras e prejudicá-las muito se não souberem como trabalhar com ela. Por isso Tabitha montou essa espécie de manual; a ideia é chegar ao maior número de mulheres para não somente protegê-las dos riscos futuros, mas também torná-las protagonistas dessa mudança.
Tabitha é muito didática: ela começa com um glossário explicando de maneira simples os termos mais comuns usados em tecnologia como deep learning, algoritmo, linguagem natural, etc. E sabe o que é melhor? Ela trabalha sempre com alguma outra especialista mulher em cada capítulo, que ajuda a explicar os tópicos.
Sobre o título, ela já avisa que está falando de Inteligência Artificial (IA), que são basicamente algoritmos; já os robôs são estruturas físicas. A questão é que robô é um termo mais apelativo, familiar e amigável. Eu concordo; a obra não chamaria tanta atenção se fosse “Como interagir com a Inteligência Artificial“, né?
O QUE É INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?
Aqui ela dá alguns exemplos do dia-a-dia que as pessoas conhecem, mas nem sempre se dão conta do que está por trás: os filtros que fazem a pessoa parecer com cara de criança num vídeo; o Facebook que reconhece automaticamente as pessoas numa foto e marca cada uma delas; as recomendações que a Netflix faz para você, os melhores caminhos que o Google Maps recomenda.
Mas para responder diretamente à pergunta, Tabitha, que não é boba nem nada, convidou Karen Hao: jornalista, engenheira e sua colega no MIT Technology. Ela explica que a Inteligência Artificial tenta reproduzir a maneira como o cérebro humano aprende e toma decisões. Mas há dois tipos: o primeiro, chamado “Inteligência Artificial Restrita” é essa citada nos exemplos. Ela é criada para executar bem um tipo de tarefa. Já a “Inteligência Artificial Geral” é a mais parecida com um humano e que ainda estamos longe de desenvolver, pois exige um repertório mais amplo. Fala também da diferença entre os robôs (hardware) e IA (software).
UMA HISTÓRIA FEITA POR MULHERES
No capítulo seguinte a autora desenha um panorama na linha de tempo contando como a IA se desenvolveu, desde Alan Turing em meados de 1930, até 2018, quando pesquisadores descobriram vieses racistas nos algoritmos. Mas no meio disso tudo, ela apresenta as muitas mulheres que fizeram tudo acontecer (e não foram poucas): vamos de Ada Lovelace, com o primeiro algoritmo, até as incríveis mulheres programadoras e inventoras das linguagens de programação e compiladores (Grace Hopper, também criadora do COBOL, inventou o compilador porque achava um absurdo as pessoas terem que usar a linguagem da máquina, e não o contrário). É sério; só esse capítulo já valeria o livro, tantas são as maravilhas que essas poderosas fizeram na computação.
MAS COMO A IA FUNCIONA?
Com a ajuda da Karen Hao, o capítulo descreve como funciona o machine learning, que tipo de dado cada programa (Fotos do Facebook, Spotify, Netflix, Youtube) usa para aprender; como eles buscam os padrões para tomar as decisões no seu lugar.
Achei muito bacana porque ela desmonta as notícias sensacionalistas publicadas sem nenhum critério, como aquela que dizia que o Facebook fez um experimento em que dois algoritmos conversavam e eles acabaram criando uma linguagem própria, que os humanos não entendiam.
Meio que tocaram terror sobre os perigos da IA, especulando como as máquinas poderiam se rebelar. Na verdade, os algoritmos foram treinados para buscar padrões, ou seja, grupos de palavras que apareciam mais quando a compra era fechada. Aí começaram só usar essas palavras e o vocabulário deles ficou restrito demais; não fazia sentido para os humanos. Em vez de superinteligência, o que aconteceu foi o oposto; o teste falhou justamente porque as máquinas simplificaram demais a coisa e o resultado não serviu para substituir um humano na negociação, que era a ideia original.
COMO NÃO FALAR COM UM ROBÔ
Nesse capítulo Tabitha fala sobre os riscos da IA, como programar um algoritmo para criar e disseminar conteúdos perigosos (como o caso do Cambridge Analytica, que influenciou o Brexit; o uso de deepfakes para distribuir fake news); discriminar grupos de pessoas (já há pesquisas mostrando algoritmos que reproduzem machismo e racismo, entre outros problemas); criar dependência entre pessoas e máquinas; infringir privacidade, provocar/participar de ataques ou guerras, entre outros.
A autora fala das causas desses riscos: basicamente dados com vieses, pouca diversidade entre os programadores, desconhecimento dos mecanismos internos para a tomada de decisão, falta de responsabilização e desigualdade digital (entre idades, países e níveis de educação, por exemplo). Aqui ela cita também algumas ações que estão sendo tomadas para tentar minimizar esses riscos.
COMO FALAR COM UM ROBÔ
Esse capítulo trata de apresentar os benefícios do uso da IA. Olha alguns exemplos:
ninguém vai mais precisar fazer trabalhos chatos,
- novos e excitantes desafios profissionais para os humanos
- forte aliança na luta contra as mudanças climáticas
- ajuda aos humanos para viver de maneira mais saudável, customização da educação
- assumir trabalhos que seriam perigosos para os humanos
- aumento da acessibilidade
- promover o fim da espera em filas
IA E O CORONAVÍRUS
Como o livro foi publicado em 2020, a autora teve tempo de incluir a participação da IA na luta contra o COVID-19. Ela cita o uso nas projeções da maneira como o vírus cresce no mundo, auxílio na modelagem, tanto para o desenvolvimento da vacina como no tratamento, além de todos os impactos sociais.
ENTREVISTAS
O oitavo capítulo é primoroso; apresenta entrevistas com mulheres brilhantes que se destacam na tecnologia, seja como empreendedoras, seja como educadoras, desenvolvedoras, escritoras ou pesquisadoras. Para mim, essa é a parte mais inspiradora: o livro poderia ter somente esse capítulo e já teria valido a pena.
E AINDA TEM MAIS
E o que já era ótimo, ainda pode melhorar: ela explica o que podemos fazer para abraçar a mudança sem muitos traumas e como se proteger. A moça deixa uma lista de livros técnicos e de ficção, documentários, newsletters, podcasts e até atividades, eventos e cursos para quem quer se aprofundar mais no tema. Realmente é um trabalho primoroso. Devia ser traduzido em todas as línguas e ser livro texto nas escolas, principalmente para meninas.
Infelizmente ainda não tem em português, mas a versão em inglês pode ser adquirida na Amazon do Brasil por esse link.
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