Ansiedade doxástica

Tem um perfil no Instagram que eu adoro, apesar de segui-lo com um certo desconforto. 

É de um professor de história da arte chamado Tio Virso. O moço tem um conhecimento admirável, mas não é só isso: ele trata a arte no seu sentido mais amplo. Eu resumiria (não sei se corretamente) a visão dele como sendo arte toda manifestação de uma ideia, sentimento ou emoção humana. O resultado é que ele não apenas fala da história da arte branca europeia tradicional, como todo mundo conhece, mas também de outros continentes e perspectivas culturais. 

E olha, ele não considera a Africa como um país e uma cultura só (o que devia ser óbvio, mas não é o que acontece na vida real). Na sua abordagem entram também a estética dos games, capas de discos ou romances baratos, quadrinhos, mangás, literatura, brinquedos e tudo o mais que você possa imaginar. Ele fala também dos artistas, dos clichês, do contexto cultural; enfim, é muita informação nova apresentada de uma maneira totalmente diferente, pois ele usa memes para explicar tudo isso. 

Daí o meu desconforto em seguir o perfil: os memes são esteticamente desagradáveis (para mim), ou seja, feios de dar dó (certeza que faz de propósito; é bem a cara dele…rs). O linguajar é também cheio de gírias engraçadas; às vezes fica até difícil de ler. Mas talvez por isso seja tão fascinante: ele realmente subverte as regras, mas o faz de uma maneira consistente e fundamentada. Na legenda de cada peça escalafobética, uma série de referências bibliográficas bem sérias. Impossível não amar.

AGNOTOLOGIA E ANSIEDADE DOXÁSTICA

Pois foi com ele que aprendi, há algumas semanas, os conceitos de agnotologia e ansiedade doxástica. E mais: como sempre fundamenta muito bem seus posts, ele indicou uma YouTuber maravilhosa que fala de filosofia que eu não conhecia: Abby Thorn, do canal Philosophy Tube

Na verdade, preciso confessar: tenho paciência zero com vídeos. Eu assisto o começo e depois leio a transcrição.  Mas ela é realmente sensacional; muito didática e com uma curadoria de assuntos que não deixa ninguém entediado. Mais uma mulher transexual fazendo história; dá para entender claramente essa moça como fonte inspiradora da brasileira Rita von Hunty, tanto no capricho da produção e edição, como na preparação do conteúdo.

AGNOTOLOGIA

Mas enfim, vamos aos conceitos. Abby começa explicando que a gente pensa que a filosofia geralmente trata do conhecimento. Mas tem uma área, a agnotologia, que estuda justamente o contrário: a ignorância.

Ela conta a história de um filósofo chamado John Rawls que defendia que em determinadas situações a ignorância poderia ser uma coisa boa. Ele defendia a ideia que uma sociedade deveria ser um sistema de cooperação baseado em algumas regras. 

E aí vem a parte interessante: para evitar que as pessoas que fizessem as regras se beneficiassem delas (a gente conhece isso muito bem, né?), esse grupo de “constituintes” usariam o que ele chamava de “véu da ignorância” que consistiria em apagar suas memórias para que eles não pudessem fazer ideia de qual seria seu papel na sociedade assim que acabasse o trabalho.

E parecia fazer todo sentido: sem saber o seu papel no mundo, os constituintes criariam leis mais justas, pois poderiam sair da reunião e descobrir, sei lá, que eram uma mãe solteira ou, quem sabe, um desempregado com limitações físicas.

A questão é que nós ignoramos e permanecemos ignorantes de tudo o que nos parece irrelevante. E esse é o limite do que conhecemos do mundo; essa ignorância dá a estrutura para a forma como construímos todos os conceitos ao nosso redor.

Com base nessa ideia, essa “Teoria Ideal” foi fortemente rebatida depois pelo filósofo Charles Mills; ele afirma (e faz muito mais sentido ainda), que se a gente permanece ignorante sobre os problemas da sociedade, não tem como encontrar soluções para eles. Se você não sabe ou faz questão de não tomar conhecimento sobre as dificuldades e questões que os transexuais ou indígenas enfrentam, por exemplo, como vai contribuir para construir regras que minimizem esses problemas?

IGNORÂNCIA PASSIVA

Os filósofos também distinguem o conceito de ignorância entre ativa e passiva. Vamos falar da passiva primeiro. 

Bem, a gente sabe que o mundo é um lugar complexo e cheio de detalhes infinitos; é impossível saber tudo. Eu não faço ideia das regras aplicadas numa luta de sumô nem quais são os personagens de mangá mais importantes dos anos 1980 e, sinceramente, não faço questão de saber. A gente não pode saber tudo, então ignorar a maioria das coisas é um fato da vida. Se a minha ignorância não prejudica ninguém (isso é importantíssimo), então está ok.

IGNORÂNCIA ATIVA

Aqui é que o negócio pega. A ignorância é ativa quando eu preciso fazer algum esforço para ignorar o tema; quando é uma ignorância proposital, calculada, escolhida. Você ativamente precisa não saber. Ué, mas como assim?

Imagine que eu sei que açúcar faz mal. Mas eu escolho deliberadamente não ler nada sobre o assunto, não ver vídeos, não conversar sobre o tema. Porque se me informar muito a respeito, vou ter que rever meu comportamento (e talvez não comer mais açúcar). Mas eu QUERO comer açúcar; então eu trabalho para ter certeza que vou me desviar desse conhecimento o máximo que puder. Fiquei chocada ao constatar o tanto que isso é real (e me descreve muito bem…rs). 

Porém, se não prejudicar outros, se não sair pregando por aí que açúcar é cheio de vitaminas, que faz bem e que essas pesquisas científicas são todas mentirosas; se não tentar convencer as pessoas a se entupirem de açúcar, nem chega a ser um problema. É só ficar cada um na sua; todo mundo é um pouco assim, fala a verdade.

A questão é quando a ignorância não prejudica somente a mim, mas também a outros; e pior: coloca a vida das pessoas em risco. Se prefiro por livre vontade não me informar sobre o racismo, se não quero saber nada sobre homofobia ou feminicídio, isso pode custar vidas… está acompanhando?

ANSIEDADE DOXÁSTICA

E então chegamos ao conceito de ansiedade doxástica: é justamente o medo de conhecer algo, de absorver alguma informação, por saber que isso pode colocar em risco as minhas crenças e opiniões. 

Doxa vem do grego δόξα e significa crença comum ou opinião (em oposição ao saber verdadeiro, episteme).

Por isso é que na maioria das vezes não adianta nada a gente apresentar fatos e evidências para negacionistas ou para pessoas que já têm certeza absoluta do que acreditam; se elas absorverem esse conhecimento, vão acabar colocando em risco suas crenças e opiniões. Vão ter que repensá-las, pelo menos. Colocá-las em dúvida. 

Então, por segurança, elas se fecham e se recusam a assimilar essas informações. É como falar com uma parede. Elas se protegem se fazendo de surdas e cegas para não terem que duvidar do que acham que já sabem (e, pelo jeito, não têm tanta certeza, senão não teriam tanto medo…).

Fica parecendo ridículo uma pessoa acreditar que a terra é plana com tantas evidências e informações; mas pense: faz todo o sentido. Se ela se abrir para esse conhecimento, coloca em risco suas crenças e sua maneira de ver o mundo. Mais seguro ignorar a realidade e ficar teimando no que acredita ser o certo, o conhecido, o seguro, não importa quão absurdo seja. 

É por isso que a filosofia coloca a ignorância (ou a agnotologia) como o contrário do conhecimento. Por que o conhecimento sabe de seus limites; o conhecimento, por definição, precisa da dúvida para evoluir.

Achei muito bacana essas definições de ignorância, pois fazem a gente prestar mais atenção: será que estou sendo mais uma ignorante ativa ou passiva? Será que a minha ignorância ativa está colocando a vida de alguém em risco?

Será que minha ignorância individual ativa está prejudicando o coletivo?

Adorei aprender esses conceitos; parece que assim as coisas fazem mais sentido e até a gente passa a analisar melhor nossas próprias crenças, certezas e ignorâncias, né?

Obrigada mais uma vez, Tio Virso. Não sou sua fã à toa.

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