− Vandinha, és tu?
− Não acredito! Neide, da Trindade?
Estava sentada ainda há pouco num avião, ao lado de duas senhoras muito excitadas. Aparentemente tinham sido vizinhas, estavam há tempos sem se ver e havia muita conversa para colocar em dia. Uma tinha ido visitar a filha em Maceió e a outra voltava de um tour pela Europa.
Não pude deixar de ouvir (e achar engraçado) quando a turista declarou que dessa vez tinha feito Itália, Alemanha e Grécia. Sempre achei bizarra essa expressão. O que poderia significar “fazer” um lugar?
Devo estar sendo preconceituosa – e estou – mas costumo ouvir isso de pessoas que visitam 12 países em sete dias e nem sabem dizer o que estão vendo. Boa parte se concentra em detalhar as compras e avaliar como as coisas estavam ridiculamente baratas (ou indecentemente caras, dependendo do país e da época). Parecia ser o caso da senhora ao meu lado e de sua vizinha, que também já tinha “feito” praticamente toda a Europa.
Certa feita fiz papel de boba ao ouvir uma colega dizer que ia variar o roteiro porque já conhecia Paris. Inocente, perguntei quantos anos havia morado lá. Pra mim, o único jeito de uma pessoa conhecer uma cidade, principalmente daquele tamanho e com aquela diversidade de atrações é vivendo lá. Ela me respondeu, como se minha pergunta fosse absurda, que tinha desfrutado da cidade luz por – pasmem – dois dias inteiros! E há quem declare, numa situação dessas, que já conhece a França.
Outro fato que me chama atenção são as popularíssimas viagens de navio. Algumas milhares de pessoas são confinadas em um clube gigante por dias, semanas. E ficam tão encantadas com a embarcação em si que tenho a impressão de que não faz muita diferença se saem ou não do porto de partida. Como desfrutar das cidades do percurso se o navio atraca às nove da manhã e tem que zarpar às cinco da tarde? Pode reparar: os viajantes dessa modalidade nunca conseguem descrever os lugares visitados tão bem e com tantos detalhes como o fazem com a quantidade assombrosa de comida e o número e estilo de restaurantes onde se pode comer à vontade, praticamente até explodir (arghh…).
Também fico intrigada com as relações hierárquicas que as pessoas inventam sobre viagens. Tive a chance de sair do país algumas vezes e sempre tem quem me pergunte, com certa indignação. “Mas você já conhece o Brasil? Quem não conhece o Brasil, não devia viajar para fora.” Ué, será que perdi alguma parte? O que uma coisa tem a ver com a outra? Além disso, alguém acha que é possível uma pessoa “conhecer” o Brasil? Viajo para onde tenho oportunidade, seja à cidade ao lado ou ao continente ao lado. Se bem que, confesso, se puder escolher, vou sempre o mais longe que posso. O contraste, as curiosidades e o jeito diferente de pensar são irresistíveis para uma curiosa nata.
Há também quem considere viagens como maratonas que precisam ser vencidas; querem conhecer o máximo de lugares possíveis em um mínimo de tempo. Daí que ficam tão atordoadas com a quantidade de informação que perdem a capacidade de se deslumbrar (o que, para uma deslumbrada profissional como eu, é o fim do passeio).
Fico intrigada com essas coisas todas talvez porque viajar, para mim, é um evento tão sagrado que não posso evitar de ter um respeito quase religioso pela atividade (tá bom, digamos que é uma religiosidade um tanto herética e petulante, mas tá valendo a alegoria). Que outra oportunidade a gente tem de fazer nosso mundo ficar maior e mais rico de um jeito tão interativo? Ouvir sotaques diversos (se for em outra língua, então, acho sublime); experimentar sabores inéditos; entender outra maneira de pensar, outra cultura e costumes; sentir cheiros diferentes; ver, com os próprios olhos a arte produzida naquele lugar em tempos atuais ou antigos; vislumbrar paisagens antes só imaginadas; aprender história e descobrir histórias.
Gente, fala sério, viajar é a coisa mais sensacional que um ser humano pode empreender; é transcender a si mesmo e ver, de verdade, o outro.
Lembrei-me agora de quando contei a um amigo querido sobre uma oportunidade em pude flanar em Londres (foram míseros dois inesquecíveis dias emendados em uma viagem a trabalho) e me deparei com uma casa cuja placa dizia o seguinte: “Aqui viveu Sir Isaac Newton”. Eu estava sozinha e fui às lágrimas, quase não acreditando que aquele gênio tinha pisado lá onde minhas botinhas estavam. Mas eis que, no final do emocionado relato, o mané dispara: “Mas quem é esse tal Isaac Newton?”
Foi aí que caiu a ficha: há tantas maneiras de viajar quanto há viajantes no mundo. Tenho meu jeito particular de bater asas e o que é sagrado para mim pode não ser para os outros; cada um com seus deuses.
De que adianta dar a volta ao mundo se a gente não consegue se desprender de si e compreender que não tem certo ou errado, não tem melhor ou pior; o que existe é uma quantidade riquíssima e infinita de pontos de vista e que essa é justamente a graça da história? Se o sujeito foi até o outro lado do mundo e gastou o tempo todo em shoppings, mas está feliz e voltou realizado, qual o problema?
Parafraseando o Caetano, que deve viajar como ninguém, só me resta concluir o óbvio: qualquer maneira de viajar vale a pena; qualquer maneira de viajar valerá.
Caroline Cezar
(Preconceituosa nr 2; deslumbrada profissional nr 2) Só discordo daqui: “digamos que é uma religiosidade um tanto herética e petulante, mas tá valendo a alegoria”. Não acho. Se religiosidade acontece da pele pra dentro, não importa o que parece pro lado de fora.
Você sabia que a maior parte dos brasileiros viajam para fazer compras? Li numa pesquisa não sei aonde e achei patético. Sem querer estender demais o preconceito, mas né?
Cercou muito bem o texto, compartilho da mesma opinião. Abraço.
Renata Rubim
Texto maravilhoso, Lígia.
Beijos,
Renata
Clotilde*Fascioni
Infelizmente nem sempre quem pode viajar para acrescentar, têm dinheiro ou poder para fazê-lo. Adorei, beijos curiosos e viajantes.
Alice Ribeiro
Ligia, comecei a ler seu texto concordando e discordando. Só me dei por satisfeita com sua conclusão, pois quando se trata de viajar, cada um se sente feliz do seu jeito. Me identifiquei com o seu, gosto de conhecer o lugar a fundo, mas nem sempre é possível, e fico feliz do assim mesmo. Bjs.
PS: Adoro o Caetano!
Ênio Padilha
Texto inspiradíssimo. Especialmente para “turistas acidentais” como nós. Parabéns, Lígia.
Sandra
Muito coerente suas reflexões!!
Abracos,
ligiafascioni
Obrigada, Sandra! Boa viagem 🙂