Voltei do Brasil com uma pilha de autores brasileiros que queria muito ler! Um deles foi a aclamada “A pediatra”, de Andrea del Fuego. Muita gente das minhas redes sociais gostou e recomendou; basta dizer que o texto da quarta capa foi escrito por ninguém menos que a Fernanda Torres (também trouxe um livro dela, pois não a conheço ainda como autora).
Começando pelas trivialidades (importantíssimas para mim…rsrs): a capa é belíssima e a edição, primorosa. Não esperava menos da Companhia das Letras, mas nunca é demais elogiar uma publicação caprichada, né?
Mas vamos à história: Cecília é uma pediatra por inércia; ela não escolheu a profissão — apenas se deixou levar. É que seu pai é um pediatra especialista e apaixonadíssimo pelo ofício; um verdadeiro workaholic. Filha única, a moça acabou fazendo medicina pois já estava com o terreno preparado: clínica, contatos, estágios, tudo. Muito difícil resistir…
A questão é que Cecília não curte crianças. Além disso, não é muito fã da profissão. Como ela mesma diz, segue apenas o protocolo (com competência e seriedade), mas basta aparecer algo fora do trivial, ela já encaminha para um especialista e não quer mais saber. Faz a mesma coisa quando acompanha recém-nascidos); por motivos óbvios, é adepta da cesariana, mais confortável para ela e sua colega obstetra parceira.
A graça da história é que Cecília é uma perfeita canalha sem escrúpulos, mas não dá para ter raiva dela. Porque não é uma malvadona óbvia; a mulher é complexa e cheia de sentimentos contraditórios.
Ao mesmo tempo em que quer se livrar logo dos problemas que a empregada grávida podem trazer, por exemplo, a trata melhor e com mais humanidade do que muito “cristão” de carteirinha. Apesar de ser a favor da cirurgia cesariana como conveniência, respeita mais as pacientes do que muito pediatra alternativo e adepto do parto domiciliar. Enfim, uma fonte de surpresas e diversão sem fim (principalmente porque a personagem é fictícia, então a gente não precisa se preocupar com algumas maldades que ela faz).
A história começa com Cecília casada com um filhinho de papai que está em plena crise de depressão, estado que ela tenta ignorar. Arruma um amante (cuja mulher está grávida) e acaba cuidando do recém-nascido, por quem, depois descobre, está perdidamente obcecada.
A mulher do amante é uma advogada de sucesso que vê sua vida ser arruinada depois do primeiro filho e com a última pá de cal na gravidez complicada do segundo. Aqui tem um retrato bem cru das consequências que as mulheres sem rede de apoio (incluindo um marido ausente) sofrem com a maternidade.
É uma história dura, com fortes doses de realismo, narrada por uma egoísta sem caráter e sem vergonha de ser assim.
Cecília me lembrou muito o narrador de “Solar”, do Ian McEwan, um ganhador do prêmio Nobel completamente cínico e oportunista.
Esses personagens, para mim, trazem uma certa diversão; gente ruim que, por ser ficção, podem falar verdades e fazer malvadezas sem ferir ninguém de verdade.
Gostei muito da palavra afiada da Andrea del Fuego. Vou procurar mais coisas dela.
Se você gosta do estilo, recomendo demais.
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