Vi “A palavra que resta”, de Stênio Gardel, sendo recomendado por muita gente e sempre só elogios. Então, quando minha sobrinha disse que vinha me visitar, coloquei na minha lista de compras e fiz a pobre carregar uma pilha de livros na mala!
Os elogios não são de graça não. Todos merecidíssimos. O autor é especialista em escrita literária e esse romance foi escrito durante um curso que ele fez com a maravilhosa Socorro Acioli (tenho resenhados aqui os maravilhosos Oração para Desaparecer e Cabeça de Santo).
Impressionante o tanto de novos talentos na literatura que a gente nem consegue dar conta de ficar sabendo.
Mas vamos à história: Raimundo Gaudêncio mora e trabalha num sítio com a família. São todas pessoas bem simples e o pai o tira da escola antes mesmo que ele consiga aprender a ler e escrever, porque acha desnecessário. Desde cedo, o rapaz precisa ajudar a família na roça e lá não precisa de letras ou números.
No pouco tempo que frequentou os bancos escolares, conheceu Cícero, seu melhor amigo e também companheiro de brincadeiras. Os dois eram inseparáveis e, na adolescência, perceberam que estavam perdidamente apaixonados. Eles sabiam que não seriam aceitos pelas famílias; então mantinham o relacionamento em segredo, até que o pai de Cícero pegou os dois no flagra e deu uma surra no filho.
Raimundo, revoltado, mas muito apaixonado, resolveu contar ele mesmo para o pai, que também não reagiu bem. Passou a surrar o filho todos os dias, para que ele “se livrasse do mal”.
Chega a doer o tanto que esses meninos sofrem por estarem separados e sem nenhuma esperança de terminarem juntos. Quem já se apaixonou alguma vez na vida sabe que é uma necessidade física ficar com a pessoa amada.
Raimundo apanha, mas nada diminui seus sentimentos (claro, né?). Cícero manda um recado para que eles se encontrem perto do rio, onde tem uma cruz, mas não aparece, e ninguém sabe por quê. A ideia era fugirem juntos, mas não dá certo.
Depois, Raimundo descobre que aquela cruz é uma homenagem que o próprio pai fez ao irmão dele, que foi morto pelo avô de Raimundo por… adivinhe? Confessar que era gay e pedir respeito por ele ser como era. O pai de Raimundo não teve coragem de matá-lo, mas queria “corrigir” o menino.
Quando Raimundo volta do encontro que não houve, teve uma conversa com a mãe, que o mandou sair de casa. Ela chegou a acusar o menino de ter perdido filhos gêmeos prematuros porque Raimundo pegou um deles no colo com seu corpo sujo e cheio de pecados. Gente? Imagina a ignorância e a violência? E vão me dizer que amor de mãe é incondicional?
Eis que o pobre Raimundo, aos 18 anos, vai arrumar suas coisinhas numa sacola, quando a irmã chega da escola e lhe entrega uma carta de Cícero. Ele pega a carta, triste e com raiva, pois Cícero sabe muito bem que ele não consegue ler as palavras; ele até tinha prometido ensiná-lo. Raimundo guarda a carta e ela vai acompanhá-la por mais de 50 anos.
Raimundo nunca deixou ninguém lê-la. Aos 71 anos, morando com uma travesti e vivendo de costurar, ele resolve entrar numa escola para adultos. Faz os exercícios todos, consegue decifrar algumas letras, e a carta lá, sempre à espera.
Ele tem medo de saber o que há nela. Seria uma despedida? Seria a combinação de um outro encontro para eles fugirem? Seria um rompimento cheio de arrependimentos? Seria uma declaração de amor? Uma vida inteira sem saber o que esperar. Sabendo que vai ser outra pessoa depois da leitura da carta.
Raimundo passou a vida inteira se escondendo, com vergonha, achando que estava errado, mas não conseguindo ser de outro jeito. Nisso, a travesti Suzzany, maravilhosa e muito barraqueira, ensina a ele uma das partes mais importantes do livro — na verdade, acho mesmo se o livro não fosse tão bom, já valeria por essa passagem:
“Tu sabe que só senti vergonha uma vez nessa vida. E talvez se não estivesse com vergonha naquele momento, tudo tivesse sido diferente, se tivesse chegado com peito erguido pro meu pai ao invés de ir falar com ele toda encolhida. Ora, se eu queria me abrir com ele, tinha que ter ido de peito aberto, decidida, mas decidi foi deixar a vergonha me acompanhar. Fui toda com medo, medindo as palavras, quase sem deixar elas saírem da boca, ficaram grandes demais, as palavras, por causa da vergonha, porque a vergonha estava bem nutrida, gorda.(…) não deu outra, meu pai só viu a vergonha, que eu estava lá menor que um rato engiado, apoucada pela vergonha, só viu a vergonha em mim, só viu a vergonha nele, na minha mãe, que eles iam passar, olhar todo dia para ela dentro de casa, ela podendo escapar a qualquer hora para a rua (…) e quem é que quer viver com vergonha dentro de casa?Chutou ela para fora e ela me arrastou junto, pronto, de que me serviu a vergonha? (…) quando a porta se fechou atrás de mim, com a rua toda na minha frente, eu soltei a mão da vergonha, fui para um lado, ela pro outro, e fui andando. Estou andando até hoje.“
Se você, como eu, não conhecia a palavra engiado, saiba que é um termo nordestino equivalente a enrugado (sim, fui pesquisar!).
Enfim, como a própria Socorro Acioli escreve na contracapa, é tudo sobre a dor da exclusão: a exclusão da miséria, do analfabetismo, da solidão, do preconceito.
É triste demais, mas escrito de uma maneira belíssima, forte, às vezes dura, às vezes leve, mas sempre impactante.
Se eu fosse você, não perderia.
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