A mão esquerda da escuridão

Olha, confesso que o título desse livro me atraiu zero. Só comprei porque li (não me lembro mais onde) que a Ursula K. Le Guin era uma das maiores escritoras de ficção científica EVER e fiquei pensando: como assim? É bem verdade que não sou especialista, mas adoro esse gênero e nunca tinha ouvido falar da diva!

Eis que fui procurar e achei essa edição de 50o aniversário do livro “The left hand of darkness” (tradução livre: “A mão esquerda da escuridão”), publicado em 1969.

Olha, primeiro preciso dizer que não foi um livro fácil de ler. A linguagem não é muito simples, os nomes das pessoas são compostos e inusitados, o universo é de fantasia e as emoções e sentimentos são tão complexos que a autora inventa um vocabulário todo próprio para traduzi-los (eu, bobinha, lendo em inglês e achando algumas palavras que não conhecia, fui procurar no dicionário só para saber que elas foram inventadas só para essa história). 

Então, se você gosta de histórias tipo “O senhor dos anéis” ou “Game of thrones”, vai que é a sua praia. Eu prefiro uma linguagem mais direta… mas vamos à história.

Genly Ai é um homem com uma profissão muito especial: ele é uma espécie de agente de uma liga de 83 planetas (como se fosse uma associação). O trabalho dele é visitar novos planetas e levar “a palavra de Ekumen” (Ekumen é o nome da confederação) e conquistar novos associados. Todos os planetas são habitados por humanos, então o que muda é mais a cultura e os idiomas. E aqui a primeira curiosidade, para um livro de ficção científica da década de 1960: o protagonista é descrito como um homem alto, forte e de pele bem escura (eu imaginei um negro retinto) para representar os humanos e atuar como diplomata. Já achei ousada. Gostei.

O planeta onde ele está no momento é chamado Winter (Inverno, em inglês), mas na língua do país local o nome é Gethen. Eele veio sozinho numa nave em missão oficial; se a negociação der certo, outras naves vêm depois, para fazer a parte burocrática. Antes dele, outros agentes disfarçados vieram, mas só para colher informações sobre os idiomas e culturas e obter material a fim de prepará-lo para a missão.

Acontece que Gethen tem uma peculiaridade não encontrada em nenhum outro planeta da liga: os humanos que vivem lá são todos hermafroditas e de aparência andrógina, ou seja, não têm um gênero sexual definido. E, para mim, essa é a parte mais bacana do livro e a principal função da ficção: imaginar outras possibilidades, outros mundos, outras formas de organização e seus desdobramentos.

Inclusive aqui aparece uma das palavras inventadas pela autora, pois não tem nada parecido na realidade que a gente conhece: o kemmer (não sei se traduziram para o português).

Funciona assim: o gethenianos têm um ciclo de 26 a 28 dias (mais ou menos como as mulheres terráqueas). São 21 ou 22 dias de período sexual latente, ou inativo. Depois eles entram no período chamado Kemmer, que pode durar de 2 até 6 dias. Durante o Kemmer, a pessoa procura um parceiro que também esteja no seu período (pode ser alguém em quem está interessado a longo prazo ou um caso passageiro, não importa). Aí as duas pessoas desenvolvem características sexuais (aparentemente o processo é aleatório, inclusive os dois desenvolverem o mesmo sexo) e transam. Existem casas onde as pessoas no mesmo período podem se encontrar só nessa fase, para curtirem, ou os pares podem ter compromissos mais longos, como um casamento. E a cada Kemmer os papeis podem inverter, já que a maior parte do tempo os dois têm gênero neutro. Quer saber de outra coisa bacana? Ninguém é obrigado a trabalhar durante o Kemmer. Achei prático!

Também pode acontecer de um dos pares engravidar (o que estiver com características femininas). Aí fica no gênero mulher até dar à luz. Depois volta ao normal (gênero neutro).

Então, a maior parte do tempo, as pessoas estão ocupadas em trabalhar, estudar, brincar, enfim, viver a vida. Só se lembram de sexo nos dias do Kemmer. Também, porque não há relações de poder entre os sexos, não existe o conceito de estupro. Jamais alguém terá relações sexuais sem consentimento — isso é algo impensável para eles.

A enorme vantagem é que não há discriminação sexual e nem divisões de gênero. Inclusive, olha só que incrível: eles desconhecem o conceito de guerra (não fica sobrando testosterona em desocupados). Todos os cidadãos têm o mesmo valor de verdade e merecem o mesmo respeito.

Há violência? Sim. Há também calúnias, egos, brigas por poder, enfim, humanos, né? Mas muito mais equilibrados. E é isso que Genly demora para engolir, pois ele é homem, vem da Terra, tem privilégios e, lembre que o livro foi escrito em meados de 1960, considera-se superior às mulheres.

Esse planeta tem outras peculiaridades: é geladíssimo e a relação deles com a tecnologia é peculiar. Já estão industrializados há mais de 300 anos, mas o desenvolvimento é bem mais lento e menos agressivo, inclusive pela falta de guerras. 

Eles possuem barcos, trens, carros e caminhões elétricos, mas várias viagens são feitas a pé porque o solo é todo congelado — o planeta passa por uma era glacial. Eles têm rádio, mas não televisão. Têm uma medicina relativamente avançada (contam com anticoncepcionais, por exemplo). Não têm naves espaciais e nem muito conhecimento astronômico.

Pois é, fiquei me concentrando na parte mais legal, que é a descrição do planeta e da sua cultura e acabei me esquecendo da história. Mas vamos lá então.

Genly Ai está em negociação com o rei de um país por meio de um embaixador/diplomata chamado Estraven (o nome é compridíssimo e ainda muda no meio da história, mas vamos pular esse detalhe). Genly é considerado um pervertido, pois tem hormônios desequilibrados, uma vez que é sempre homem e está sempre no período de Kemmer (errados eles não estão…rsrs). Como o lugar é geladíssimo e estão todos sempre com muita roupa, até dá para disfarçar. O que é mais difícil de esconder é o preconceito dele, que não apesar de conseguir se expressar relativamente bem no idioma e conhecer os hábitos e costumes, não consegue aceitar muito bem.

Estraven, o diplomata, é um sujeito muito generoso, atencioso e realmente quer ajudar Genly na sua missão, tentando convencer o Rei a aceitar o acordo. Porém o tal Rei, doido, vaidoso, narcisista, ignorante e desconfiado como sói aos reis serem (nossa, não queria usar essa construção, mas não sei de outra que coubesse melhor…rs), considera, do nada, Estraven como um traidor. 

Ele é condenado ao exílio, sem dinheiro, sem nada. Quem ajudá-lo pode ser condenado junto. Estraven tinha dois filhos com seu parceiro e nem pode se despedir; fugiu a pé e depois de barco, para outro país.

O Rei manda Genly embora também, mas ele vai de maneira digna, como turista, para o mesmo país que Estraven. Lá Genly é recebido pelo outro governo, mais democrático — o país parece um pouco mais evoluído, mas nem tanto.

Para mim, o mais difícil é a maneira fria como Genly trata Estraven, que estragou toda a sua vida para ajudá-lo e não recebe um mínimo de gratidão, ou, pelo menos, reconhecimento. As coisas se complicam nesse outro país e, de um dia para o outro, Genly se torna persona non grata. Estraven se arrisca mais uma vez para ajudá-lo.

E a história é basicamente sobre a relação entre eles com esse cenário fascinante de fundo, mas tem várias sacadas muito interessantes. Por exemplo, no título, a mão esquerda da escuridão, vem de um poema de dentro do próprio livro, significa a luz. Fala que os opostos não existem de maneira isolada, dependem sempre de seu contrário para existir e tem a ver com a não binariedade da sociedade gentheniana, que considera os dois gêneros como parte de uma pessoa completa.

Tem uma parte que eu também gostei muito, quando as pessoas vão consultar o oráculo, um lugar onde alguns sábios se reunem para dar respostas a quem pergunta (aliás, vender, pois são caríssimas). A chave é que eles são bem literais, então se a pessoa não pergunta corretamente ou deixa margem para ambiguidade, vai jogar tempo e dinheiro fora. Aí um personagem do livro pergunta algo ao Oráculo completamente aberta, do tipo: Quanto tempo fulano ainda vai viver? E recebe uma resposta totalmente ambígua do tipo: “Fulano viverá mais que beltrano”. E a conclusão é que deuses falam, espíritos falam, computadores falam. Mas oráculos e estatísticas só fornecem mais lacunas (a palavra em inglês é loophole — algo como buraco em loop, que acho muito mais adequada, porém, difícil de traduzir).

Ursula era filha de antropólogos; sempre viveu cheia de livros e cresceu ouvindo conversas e debates sobre o tema. Talvez isso explique a maestria com a qual ela consegue descrever os dilemas humanos, as emoções, as diferenças culturais. Só um repertório tão vasto e variado seria capaz de criar um mundo tão diferente e criativo.

Como eu disse, não é um livro fácil. Vi alguns comentários pela internet de gente que está lendo o livro pela quarta vez; realmente são muitas camadas para serem compreendidas de uma vez só.

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