As 5 lições que aprendi com os incompetentes motivados

Aqui compartilho a experiência de usar IAs generativas para ajudar a fazer a análise dados de uma pesquisa. O resultado é sempre impressionante, mas às vezes, também surpreendente. A chave está em entender como essas ferramentas “pensam”. 

Disclaimer: Esse artigo é direcionado a pessoas leigas e usuários comuns; não especialistas e profissionais no uso das ferramentas de IA generativas.

A PESQUISA

Fazendo uma pesquisa sobre FoBO (Fear of Become Obsolete) em conjunto com a consultora Marilia Lobo, chegou o momento de tratar e entender os dados. A pesquisa foi feita no Google Forms e gerou um arquivo no formato Excel. 

Nenhuma de nós duas é analista de dados, de maneira que a ideia mais lógica foi contar com o auxílio de uma IA generativa para responder as principais perguntas e fazer as correlações. Por exemplo: dentre os respondentes, quais as estratégias de enfrentamento para o FoBO são mais utilizadas para cada gênero? Qual a faixa etária está mais preocupada? Qual o nível de escolaridade está sentindo menor o impacto dessas mudanças? E coisas do tipo (um artigo com o resultado dessa análise está sendo elaborado e em breve publicado).

TOMANDO MEUS CUIDADOS

Cabe ressaltar que tenho por princípio não colocar todos os meus projetos e conhecimento numa única IA; é uma estratégia para tentar proteger, pelo menos um pouco, os meus dados pessoais e resultados de muito trabalho. 

Por isso, acabo usando as versões gratuitas dentre as várias ferramentas disponíveis — assim acabo distribuindo as informações e não colocando todos os ovos em apenas uma cesta. Se eu assinar uma delas, a tentação de só usar essa será muito grande (e, na minha opinião, arriscada — IAs desconhecem o conceito de propriedade intelectual entre outras questões éticas — não confio nelas).

AS TENTATIVAS

Minha primeira opção aleatória foi o Claude, mas ele achou minha planilha muito grande (lembrando que uso a versão gratuita) e negou o trabalho. Pelo menos foi honesto.

Minha próxima opção foi a Perplexity. Gostei muito da experiência com o Deep Seek gratuito (fiquei muito impressionada e, por que não dizer, entretida, acompanhando os caminhos percorridos durante o processo de pesquisa) e resolvi delegar a ela essa tarefa. 

Elaborei um prompt que acreditava ser completo (a gente sempre acha) e subi a planilha. 

Olha, não vou mentir: fiquei maravilhada com as várias páginas de um relatório caprichadíssimo que recebi como resposta; eram as análises das correlações que eu pedi, destrinchados em textos completos e bem escritos. 

SERÁ?

Foi então que percebi que a Perplexity tinha apontado como uma das estratégias de enfrentamento mais utilizadas pelas mulheres, em primeiro lugar, a terapia. Tinha um parágrafo todo descrevendo os possíveis motivos, mas não mostrava números. 

Fiquei intrigada, pois no gráfico gerado pelo próprio Google forms, terapia não aparecia nem entre as 5 estratégias mais usadas. Sendo que as mulheres eram mais da metade dos respondentes, como poderia ser isso possível?

Desconfiada, pedi para ela me dar números. E ela nem titubeou: 16. Ué? Mas meu questionário tinha 157 respostas! Como 16 poderia ser a maioria?

Foi aí que pressionei um pouco mais; falei que a resposta não fazia sentido e questionei de onde ela tinha tirado esse valor.  

Está preparado para a resposta? 

Pois ela me disse, com a cara mais deslavada desse mundo (se ela tivesse uma), que não tinha conseguido processar os dados que eu tinha fornecido; então ela fez uma pesquisa geral, fez inferências, algumas comparações e chegou a esse dado. Ou seja: ignorou minha pesquisa e saiu loucamente inventando números!

E não apenas esse; olhando o resto do belíssimo relatório, nada daquilo representava a análise da minha pesquisa. Eram conclusões aleatórias, inferidas sabe-se lá de onde (ela não citou as fontes). 

Tentei a mesma coisa com o chatGPT, mas dessa vez fui explícita: por favor, atenha-se aos dados que  eu forneci. Ele fez uma primeira análise (não tão completa, mas pelo menos verossímil) e respondeu as principais perguntas. 

Fiquei mais interessada e pensei em mais algumas questões. Só que na primeira pergunta da sequência depois da apresentação, ele simplesmente “esqueceu” tudo e começou a inventar números e conclusões. 

Provavelmente na versão gratuita a janela de contexto (que determina quantos tokens — ou unidades de informação — a IA vai conseguir “lembrar” durante uma conversa) é insuficiente para os desdobramentos do diálogo. Enfim.

USANDO A FERRAMENTA CERTA

Fui então em busca de uma ferramenta mais específica para análise de dados. Achei o Julius.ai e pedi as mesmas coisas. Dessa vez, a resposta realmente foi mais completa; ele gera o código Python em tempo real e disponibiliza as tabelas de correlação para download. Ele não se estende muito na análise (o que realmente não tem necessidade, uma vez que tendo os percentuais reais e as correlações, é possível fazer a avaliação sem ajuda). 

Enfim, parece óbvio, mas às vezes a gente se esquece do básico: para cada aplicação, uma ferramenta específica. Ferramentas de uso geral têm mais limitações pela sua própria natureza, tanto por causa da maneira como ela foi treinada, como também pelos seus vieses.

E O INCOMPETENTE MOTIVADO?

O título desse artigo fala sobre os perigos do incompetente motivado porque o caso me lembrou da matriz motivação x competência, onde temos o competente motivado (melhor pessoa da empresa, precisa ser incentivada e promovida), o competente desmotivado (precisa de incentivo, vale a pena investir), o incompetente desmotivado (essa é fácil, só mandar embora) e o mais perigoso de todos: o incompetente motivado.

Essa pessoa quer contribuir a todo custo; é a solicitude encarnada, tenta fazer o impossível, mas muitas vezes, não tem noção das suas limitações e dos impactos que as suas atitudes podem provocar. 

Pois na minha opinião, essa é descrição de uma IA generativa: ela foi programada para dar respostas e cumprir tarefas a qualquer custo; ela simplesmente não mede esforços para entregar um resultado. Se os dados não estão disponíveis, ela dá um jeito. E segue a vida, pleníssima!

POR QUE ISSO ACONTECE?

De uma maneira simplificada, uma IA funciona baseada em tokens, que são módulos de informação. A tarefa dela é sempre uma só: encontrar o próximo token com maior probabilidade de aparecer depois daquele — para isso, ela usa a gigantesca base de dados disponível; ela prioriza dos dados que você forneceu sim; porém, ela precisa sempre da base maior para conseguir “conversar” em linguagem natural. 

Então a experiência nunca é isolada, de maneira que ela migra para a base maior com muita naturalidade quando os dados são insuficientes. E com isso ela preenche lacunas de informação. Ela quer cumprir a tarefa a todo custo e se você não perceber que ela “roubou” um pouquinho, todos ficarão felizes.

UM POUCO DE PENSAMENTO CRÍTICO NÃO FAZ MAL

O problema é que uma das coisas que estamos perdendo sem perceber é o nosso pensamento crítico. Temos que usar a IA como um estagiário bem intencionado, mas que ainda está aprendendo e não tem nenhuma experiência de vida. 

A gente precisa ter consciência que esse estagiário foi criado num ambiente cheio de vieses e que ele não tem sentimentos ou escrúpulos. Só tem uma missão em mente: cumprir a tarefa que lhe foi solicitada.

Então, a gente não pode delegar decisões importantes para alguém com esse perfil; ele pode ajudar demais, isso ninguém nega, principalmente tarefas que não exijam lidar com critérios subjetivos. 

Mas não podemos perder de vista o fato de que ele não se importa com a verdade (de fato, desconhece o conceito); tudo o que ele faz é ir atrás dos dados mais prováveis para fornecer a resposta.

O QUE APRENDI

Como conclusão, deixo aqui alguns aprendizados:

  1. Sabe aquele famoso prompt em que a gente pede para o Chat nos explicar algo complexo como se a gente tivesse 5 anos de idade? Pois o contrário também vale: você tem que explicar as coisas como se ELE tivesse também 5 anos, mesmo as coisas mais óbvias (obrigada, Marília, pela grande sacada!).
  1. Se você está usando plataformas gratuitas, que têm menos menor janela de contexto, tente colocar absolutamente tudo o que você quer num prompt só, seguido do arquivo que você quer analisar (se for o caso). As IAs se “esquecem” dos dados no meio da conversa e dali para frente é tudo ficção.
  1. Sempre, absolutamente sempre desconfie das respostas, por mais brilhantes que pareçam. Cheque as fontes de pesquisa (no caso do Deep Research) e nunca se esqueça que o algoritmo trabalha sempre sobre o mais provável — como a web está cheia de fake news e artigos enviesados, os chats não têm raciocínio crítico para avaliar o que é verdade ou não.
  1. Não forneça seus dados desnecessariamente. Esses dias fiquei chocada com uma arquiteta contando toda feliz que subiu todos os seus projetos e pediu um plano de gerenciamento. Ora, esses projetos entraram para o “bolão”da base de dados. Se na outra ponta alguém pedir ajuda para fazer um projeto, não é difícil receber exatamente o dela como resposta. Pense nisso ao escrever um livro, um manual, documentar um projeto, planejar algo sensível (tipo uma viagem). Desmembre em partes e use diferentes bots se realmente precisar de ajuda. 
  1. Eu vejo gente fazendo terapia, contando os pormenores da sua vida para os chats e fico chocada com tanta inocência. Gente, os algoritmos não têm alma, não tem sentimentos, não tem princípios ou limites. Como diz o Yuval Harari, eles são como psicopatas: inteligentes, poderosos e sem nenhum escrúpulo. São muito úteis sim, mas não custa ter um pé atrás…

SERÃO AS IA NOSSAS INIMIGAS?

De jeito nenhum, as IA estão aqui para nos ajudar (e muito), não nos substituir. Mas para isso, temos que tratá-los exatamente como elas são: ajudantes, auxiliares, assessoras. Jamais gestoras, analistas ou juízas. 

A decisão final sempre tem que ser de um ser humano, de preferência com habilidades de avaliação, análise, interpretação, inferência. Pessoas que se questionam continuamente e sem medo. 

A pergunta que fica é: será que a gente realmente está tratando essas IA como as auxiliares poderosas que elas realmente são, ou como consultores especialistas em quem confiamos cegamente? Temo que o risco da segunda opção esteja se tornando cada vez mais comum se a gente não prestar atenção…

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