Vamos comprar um poeta

Eu vi “Vamos comprar um poeta”, de Afonso Cruz,  sendo recomendado em mais de um lugar nas redes sociais. Achei o título curioso, então quando a minha querida sobrinha Bruna veio do Brasil me visitar, trouxe um exemplar (metade da mala da pobre moça eram livros).

A obra é bem curtinha (menos de 100 páginas) e é tipo uma fábula. Você lê numa sentada e sai sorrindo no final. O autor é um multiartista português cheio de talentos (além de escritor, é ilustrador, músico e cineasta) e já tem mais de 30 volumes publicados (nunca tinha ouvido falar dele; quanta gente boa tem nesse mundo que a gente não conhece!).

Mas vamos à história, narrada por uma menina de 13 anos; sua família, composta de pai, mãe e irmão, quase da mesma idade, é dona de uma fábrica.

Nesse mundo, que podemos considerar uma distopia, tudo é medido e pesado para ser devidamente e proporcionalmente monetizado e contabilizado. A menina chora em mililitros; os beijos são calculados pelo volume de saliva trocado; a paixão é dada pelo percentual de encantamento; até o número de fios de cabelos são considerados. O objetivo é que, no final, a pessoa consiga saber se teve ou não lucro em determinada atitude, mesmo que corriqueira do dia-a-dia. Assim, tudo precisa ter utilidade, e, de preferência, valiosa.

As pessoas, em vez de nomes, têm números. Casas depois da vírgula indicam sobrenomes pomposos. Os programas na TV são todos sobre educação financeira e o aumento da produtividade é o objetivo de todos. Tanto que, em vez de bom dia, boa tarde ou boa noite, o cumprimento corrente é “Prosperidade e crescimento”. 

Por isso a menina ficou tão surpresa quando pediu um poeta para o pai e ele não resistiu muito para atender ao seu pedido. Bem verdade que ele estranhou um pouco, e sugeriu um artista. A mãe logo cortou a conversa dizendo que artistas fazem muita sujeira, segundo uma conhecida que comprou um. 

Aparentemente, um poeta é como um eletrodoméstico e você vai numa loja para escolher. Ao contrário das pessoas comuns, os poetas não têm roupas ou utensílios patrocinados por marcas e não se preocupam em ser úteis. Foi recomendado que a menina também levasse cadernos e lápis para acompanhar a aquisição.

É muito bizarro isso, pois o poeta parece aéreo e inconsciente da sua posição. Ele dorme numa cama arranjada sob a escada e come com a família. De vez em quando fala uma frase poética, mas nada muito ousado. Mesmo assim, sua presença muda a atitude da família inteira, sem que eles percebam. 

É uma frase aqui, outra ali, e a menina, curiosa, vai ficando cada vez mais intrigada com as ideias do poeta. Ela começa, aos poucos, a duvidar da necessidade de tudo ser útil, produtivo e lucrativo.

O poeta da história seria mais um filósofo, a lançar perguntas e frases que provocam a reflexão. Até o pai é afetado, mesmo que, depois de um tempo, queira devolver a aquisição.

Eu fico imaginando um filme do Wes Anderson com todas aquelas cores e diálogos. Seria maravilhoso.

No final, depois da história acabada, o autor ainda inclui um apêndice onde ele apresenta algumas definições, discussões e citações sobre poesia, filosofia, cultura, utilitarismo e a criatividade. Uma aula completa: informação, beleza e poesia (mesmo que em formato de prosa). Perfeito.

Recomendo com estrelinhas!

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2 Responses

  1. Quintana Guidi
    Responder
    25 agosto 2024 at 12:52 pm

    Lígia, leia dele “para onde vão os guarda-chuvas?”.
    É muito bom!
    Um abraço

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