A porta de cada um

Há alguns anos, antes de ter esse blog, aconteceu um fato que me marcou muito, apesar de aparentemente trivial.

Morava num prédio que, apesar da excelente localização, era antigo e não tinha elevador. As portas dos apartamentos eram todas diferentes, tanto nas cores como na textura (algumas tinham até aqueles relevos e vernizes de caixão de defunto, sabe?). Mas enfim, gosto é gosto, cada um tem o seu e isso nunca me incomodou.

Ao me mudar, logo percebi que aquela diversidade poderia me ser favorável, pois adoro diferenças. É que eu tinha planos mirabolantes para a minha porta que jamais poderiam ser colocados em prática em um edifício novo, com portas padronizadas.

Fiz da minha entrada uma manifestação de boas vindas aos visitantes e passantes. A idéia é que ninguém (nem eu), conseguisse passar da soleira para dentro com a cara amarrada ou mau humor. Para mim, alto astral é tudo num lar.

Cuidei para que o tema não ofendesse ninguém, não fizesse propaganda de partidos políticos, religião ou times de futebol, que não fosse agressivo, enfim, que não conseguisse reunir elementos nem mesmo para ofender o mais ortodoxo dos muçulmanos. O objetivo era um só: provocar bem-estar, bom humor, divertimento. Mostrava uma moça sorridente fotografando o visitante (a lente da câmera era o meu olho mágico).

Pois eis que alguns dias depois recebo uma correspondência do condomínio intimando a mundaça da minha porta no prazo máximo de 5 dias porque ela estava “fora do padrão”, sob pena de receber multas diárias. Ora, ora. Então quer dizer que o condomínio tinha um padrão? Qual seria? E ainda pensei, na mais pura ingenuidade: mas como será que todo mundo vai mudar as suas portas em apenas 5 dias? E fui bater na porta da síndica (por sinal, de uma madeira entalhada que eu nunca tinha visto nas redondezas).

Bom, conversamos bastante, eu pressionando para saber qual era o padrão, ela desconversando. No final, confessou: alguns moradores a obrigaram a tomar uma providência porque a minha porta estava muito diferente. Cada um podia ter a porta que quisesse, o problema era só com a minha. Isso mesmo — e o pior é ninguém a achou feia, nem ofensiva, nem mesmo de mau gosto. As pessoas apenas estavam incomodadas porque ela era muito diferente do normal.

Resumo da ópera: fiquei muito magoada, chateada mesmo, mas acabei trocando a tal da porta, pois ela acabou causando um efeito contrário ao desejado, então tinha perdido o sentido. Mas confesso que aquilo me derrubou um pouco e até hoje me lembro do episódio com tristeza.

De qualquer forma, já estava um pouco acostumada. Sofri outras vezes por ter algumas ideias diferentes do normal: fui cobrada sistematicamente tanto por gente conhecida como estranha porque escolhi não ter filhos; consegui amealhar inimigos que até hoje investem seu precioso tempo me enviando e-mails desaforados porque não concordam com minhas ideias sobre design e sobre atitude profissional de designers (certa feita fui desclassificada em um concurso para professor numa disciplina onde tenho doutorado sob a ridícula alegação de que não possuía diplomas e publicações suficientes); transformei um apartamento de três quartos num quarto e sala, derrubando todas as paredes, para escândalo de muitos; matriculei-me numa auto-escola para aprender a pilotar motos aos 39 anos. De fato, tenho que concordar com essa gente: não sou normal não. E estava ficando cada vez mais difícil me adaptar às portas-padrão…

Talvez por isso é que quando cheguei em Berlin e vi que a senhorinha que trabalhava como caixa no supermercado tinha metade do cabelo verde e a outra metade pink; que casais gays andavam de mãos dadas sem incomodar ninguém; que pessoas fantasiadas de personagens de quadrinhos pegavam o metrô sem chamar atenção; que um homem de peruca chanel e sandálias altas podia tomar café na padaria rodeado de amigos vestindo ternos escuros sem ser incomodado; que cachorros frequentavam livrarias; que as fachadas eram ousadas e originais; e que, veja só, até as portas eram todas bem diferentes, bem… me senti em casa.

Impossível descrever a sensação de ter finalmente encontrado meu espaço no mundo. Definitivamente, nasci para viver numa cidade assim, onde as pessoas não são julgadas por suas portas. Não tenho nenhuma identificação com a língua e nem com a cultura desse lugar, mas sua essência me atrai e me completa.

Berlin, somos duas anormais, amiga. E juntas, espero, seremos felizes para sempre…

20 Responses

  1. 7 outubro 2012 at 11:52 am

    Realmente a gente percebe a distancia seu novo espíritu e como esta mudanca esta sendo beneficiosa e tao bem aproveitada , Seus amigos a distancia estamos curtiendo muito e aprendendo mais, acho que toda mudanca e boa especialmente quando se tem aquella vissao de turista perpetuo, sempre se maravilhando com cosas que para os locais sao totalmente normais e para quem tem seu olhar, motivo de aprendizado permanente.
    Grande abraco

    • ligiafascioni
      Responder
      7 outubro 2012 at 12:07 pm

      Puxa, que palavras lindas, Jorge! Uma grande motivação para compartilhar essas descobertas diárias é justamente saber que do outro lado da tela há pessoas como você para apreciá-las. Beijos e obrigada!

  2. Clotilde♥Fascioni
    Responder
    7 outubro 2012 at 1:40 pm

    Agora depois de tantos anos do “caso porta” me dei conta que o que realmente chocou aquelas pessoas foi a sensação de serem vigiadas.

    • ligiafascioni
      Responder
      7 outubro 2012 at 1:42 pm

      Aahahaahah… é nada, Clô! Eu morava no quarto andar de um bloco, sendo que o condomínio tinha 12 blocos. A maioria das pessoas nunca viu a minha porta; era que nem caviar, só ouviram falar….eheheheheh
      Beijos 🙂

  3. 7 outubro 2012 at 3:31 pm

    Achei a porta o máximo! E estou a gostar muito de através dos seus textos ficar a conhecer um bocadinho de Berlim.

  4. Rosana Conte
    Responder
    7 outubro 2012 at 4:18 pm

    Amei o post e a porta, é claro! (o que fez com ela?). Eu também gosto desta liberdade de poder ser quem se é, que temos aqui em Berlin, isto ao lado da segurança é sem sombra de dúvida a maior das vantagens de se viver aqui. Bjs

    • ligiafascioni
      Responder
      7 outubro 2012 at 4:22 pm

      Acabei dando a porta de presente para o porteiro (quer pessoa mais adequada?), que adorou 🙂
      Quem sabe consigo ressuscitar a ideia no próximo apartamento, heim?
      Beijos e saudades, lindona!

  5. Jeff
    Responder
    7 outubro 2012 at 7:33 pm

    Aqui em São Paulo está tudo tão bege!

  6. Morgana Stegemann
    Responder
    8 outubro 2012 at 9:50 am

    Pois é Lígia, infelizmente o Brasil de todas as raças e culturas é apenas uma ilusão quando se trata de respeitar as diferenças. O que é uma pena visto que pessoas brilhantes como você precisam de asilo no exterior para se sentirem bem. Espero que um dia as pessoas cuidem mais dos seus narizes ao invés de se preocupar tanto com a porta dos outros…

  7. 8 outubro 2012 at 1:56 pm

    Sinto isso com frequência aqui no nosso Brazil. Qualquer um que tenha características diferentes do normal (seja lá o que “normal” queira dizer) é sumariamente julgado e condenado. Eu tenho dois filhos de mães diferentes (bem o seu contrário) e sou solteiro.
    Apesar de vê-los todos os dias, exemplarmente, sou culpado por mil coisas. Para completar, trabalho numa equipe onde todos são casados e religiosos, exatamente aquele tal “normal”.
    Sinto-me bem normal, apesar de nunca ter casado. Não assisto futebol, não tomo cerveja, tatuagens, não assisto TV aberta, enfim, as vezes pensam que sou de outro planeta.
    Quando dizem que o Brésil é um continente, que continente é esse?

    • ligiafascioni
      Responder
      8 outubro 2012 at 2:39 pm

      Puxa, temos muito em comum! Também não tinha TV em casa (suprema aberração!). Pois é, uma pena, eu acho, que as pessoas sejam tão conservadoras. Depois ninguém sabe porque o país fica lá no chinelo quando o assunto é inovação. Jeitinho todo mundo adora dar (e chamam isso de criatividade), mas quando a coisa fica mais séria, aí complica bastante.
      Obrigada pela visita e sucesso!!!

  8. 8 outubro 2012 at 8:08 pm

    Ligia Fascioni. Que conversa é essa de “Felizes para Sempre!”? Não gostei disso não. Não era pra ser só um tempo? Dois anos? Três, no máximo? E como ficamos nós, brasileiros? Teremos de nos contentar com visitas esporádicas?
    Lígia. Falando sério. O Brasil é tão carente de pessoas como você, que deveria haver uma lei proibindo esse tipo de gente de deixar o país.

    • ligiafascioni
      Responder
      9 outubro 2012 at 2:56 pm

      Aahahahaha…. rapaz, mas a minha listinha de coisas para visitar por aqui só faz crescer. Além disso, o duasmotos.com se mudou para cá também e as meninas precisam passear pelo velho continente. Sem dizer que vou levar pelo menos mais uns 3 anos para falar alemão fluentemente; fazendo as contas, tenho que morar aqui pelo menos 20 anos para valer o investimento….eheheheh

      Mas relaxe: tenho 4 gatos fofos aí, uma mãe, 3 irmãos, sobrinhos e muitos amigos queridos que não vão me deixar ficar muito tempo aqui sem voltar para dar um cheirinho de vez em quando. Estou conseguindo ir duas vezes por ano e pretendo manter a média.

      E você, quando é que vem para essas terras bárbaras?

      Beijos,

      • 9 outubro 2012 at 4:45 pm

        Lígia
        A Alemanha sempre esteve na minha lista de países a conhecer na Europa. Até porque a minha esposa (Áurea Loch) é, como o sobrenome denuncia, de origem alemã e, certamente, aprovaria muito a ideia.
        Depois que você passou a mandar seus “relatórios” a disposição para conhecer a Alemanhã aumentou muito, claro!
        Espero que possamos ir, muito em breve. E, com certeza, tiraremos um dia para que você nos leve a um passeio guiado e escolhido à dedo (desses que não está em nenhum guia turístico)
        Beijo.

      • ligiafascioni
        9 outubro 2012 at 5:10 pm

        Uau, que legal! Vou ficar esperando o nobre casal (mas não olhe no dicionário o significado de “Loch”, plis…eheheh).
        Beijos 🙂

      • 9 outubro 2012 at 5:59 pm

        Ih! tarde demais. Todo mundo já olhou. Ela conta que, quando eram crianças, chegavam a brigar na escola com as outras crianças que implicavam e faziam troça com o significado…

      • ligiafascioni
        9 outubro 2012 at 6:25 pm

        Aahahaah… não vou falar coitada porque piora…eheheh
        Mas é só porque a cidade era alemã. No resto do Brasil ninguém nem desconfia (e ainda acha chique!).
        Beijos 🙂

  9. 18 outubro 2012 at 9:31 pm

    Oi, Ligia!

    Engraçado, cada dia que passa (mentira, estou falando só de hoje, que estou lendo vários posts do seu blog de uma vez só) fico mais impressionada com as coisas que vou descobrindo de você.

    Além de acompanhar suas andanças pelo Instagram, agora descobri que você também não quer ter filhos. Interessante encontrar pessoas que falam abertamente sobre este tema. Eu também não quero, mas sinto uma certa desconfiança por parte das outras pessoas, quando falo da nossa decisão (meu marido também compartilha da mesma ideia). Ainda mais porque somos recém-casados. Aí que o pessoal fala que depois a gente vai mudar de ideia. Depois do quê eu ainda não sei. Bom, nem quero saber, né?! Vai ver que é depois do fim do mundo, quando só sobrarmos nós dois e precisarmos repopular a Terra. Hehehe…

    Adorei sua porta. Invista em uma na casa nova. Ah, e se for aqui no Brasil, invista em um capacho bem colorido e criativo. Foi essa a forma que eu encontrei de me rebelar contra a mesmice por aqui.

    Beijos e sucesso!!!

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