Formigas renascentistas

 “Especialização é coisa para formigas”. Estava folheando uma revista em um café quando me deparei com essa bomba. A frase me fez pensar. Como assim? Lembrai, leitores, eu tenho um título de doutorado strictu sensu. Quer mais especialista que isso? Era uma entrevista com o cartunista Aroeira, que dissertava sobre seus múltiplos talentos (além de excelente chargista, o moço também toca saxofone em uma banda), dizia que as formigas têm capacidade para aprender e fazer somente uma coisa durante toda a vida, que é carregar comida para dentro do formigueiro. São excelentes no que fazem, porém muito limitadas.

Para ele, o ser humano não precisa ser assim. Tive que ler a entrevista toda para entender o raciocínio, que para mim fez todo o sentido. Olha só: ele não quer dizer que uma pessoa não possa se especializar e todo mundo deva ser generalista (assim, nunca descobrirão a cura para o câncer, entre outras coisas importantíssimas). Especialização é essencial, bitolação é que é o problema! Você pode (e deve) ser especialista em alguma coisa, fazer algo melhor que todo mundo, estudar a fundo algum assunto para fazer o conhecimento andar para frente. No complexo planeta que a gente vive, esse é o único jeito de fazer diferença. O problema é que a história não acaba aí. É que você tem que ser especialista em pelo menos uma coisa, mas também ótimo em várias outras. Muito diferente de não ser bom em coisa nenhuma.

O Aroeira chamou isso de perfil renascentista (eu adorei a metáfora, não é perfeita?). Só para lembrar: no período da Renascença, as pessoas militavam em áreas diversas com a maior desenvoltura e sem preconceito. Rabelais, em 1532, coloca a seguinte frase na boca de seu personagem Pantagruel: “Todas as disciplinas são agora ressuscitadas, as línguas estabelecidas (…) Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo.

O ícone do Renascimento que resume o espírito da época é Leonardo da Vinci, que, como todos sabem, foi o máximo em tudo o que se meteu a fazer: arquitetou, engenheirou, inventou, esculpiu, pintou, enfim, só faltou mesmo bordar (talvez não tenha faltado; nós é que não sabemos). É claro que o Leonardo é um fenômeno genial, mas a idéia é mostrar que a atuação em várias áreas era corriqueira na vida das pessoas naquela época — elas ainda não sofriam da febre da especialização exclusiva.

Adorei a idéia do Aroeira. Especialização sim, desde que o sujeito não vire formiga. Sejamos todos profissionais renascentistas!

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Escrevi isso em dezembro de 2006, mas penso que tem tudo a ver com os livros que ando lendo…

2 Responses

  1. 29 novembro 2010 at 2:16 pm

    Posso estar enganado, mas especialização é um fenômeno moderno, pós-revolução industrial, que focou energias “no parafuso e não na máquina em si”.

    Basta ver certas dualidades de um profissional norte-americano, que sabe como ninguém aquilo que faz, e que fora do seu script parece perder o chão.

    O mundo, hoje, precisa cada vez mais de “especialistas-generalistas”, que ao menos consigam compreender a estranha guerra que existe entre os “donos” do saber.

  2. 17 fevereiro 2011 at 11:01 am

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