Conto coletivo: Onofre

Fotografia modificada (original de Rokman)
Fotografia modificada (original de Rokman)

Lembra daquela brincadeira em que uma pessoa começa uma história e as outras vão continuando? Pois é. O Fernando Cabral, compadre do Facebook, convidou algumas pessoas para brincar com ele, e se lembrou de mim (honra!).

Funcionou assim: ele postou um parágrafo e os convidados iam se inscrevendo para a parte que desejavam continuar (de um a 10). Eu escrevi o terceiro parágrafo e foi muito divertido! Cada pessoa que continuava, dava uma volta na história e mudava tudo. Adorei!

O resultado segue abaixo e os autores foram, por ordem de participação: Fernando Cabral, Walter Cesar Lencina, Lígia Fascioni, Marina Bortoluzzi, Alexandre Freire, Antero Neto, Gustavo Ávila, Dino Cantelli, Keigiro Ueno e Pedro Cavalcanti.

*****

ONOFRE

Nos 32 cômodos do casarão, Onofre buscava se entreter. Surdo de um
ouvido, tinha um olho inutilizado pelo estouro de uma lâmpada quando
recém-nascido. Margarida nunca se perdoou, e criou Onofre com tanta
proteção que ele nunca havia ido além dos limites da propriedade. Seu
mundo era o casarão, Dona Margarida e Clemente, o sexagenário. A vida de Onofre não era de surpresas. Até aquele dia em que tudo começou a mudar.

Como você entrou aqui? – perguntou Onofre, entre curioso e assustado. Nunca tinha visto aquela menina, aliás, nunca tinha visto menina alguma, nenhuma outra criança sequer. Só conhecia as pessoas através de fotografias antigas, e mesmo estas, Margarida não deixava o menino ver com freqüência. “Fotografias são mentiras de papel”, costumava dizer, autoritária, entre um suspiro e outro. Por causa de seu problema, o fôlego não lhe permitia dizer frases muito longas. Mesmo as frases mais curtas lhe exigiam uma tomada de fôlego grande, e por isso, ela pouco falava. Mas além de isolar Onofre naquele casarão, escondendo-lhe fotos e outras referências, Margarida abominava a televisão: o menino nunca tinha visto uma – e jamais veria, segundo a sua proposta. E em meio a tanto boicote e seqüestro de comunicação com o mundo exterior, Onofre sequer sabia se deveria sentir medo, alegria ou espanto diante daquela menina, ali, parada diante dele, apenas olhando-o com seu olhar muito negro, bem dentro dos olhos.

Notou que um dos olhos da menina era cego como o seu. Seriam todos os seres humanos assim? Ela carregava duas goiabas em uma das mãos e o que parecia ser a miniatura de um ser humano de cabelos compridos na outra. Muito estranhas as roupas do pequeno humano paralisado, coloridas demais para alguém usar. A menina deu uma mordida numa das goiabas e apontou a outra na direção de Onofre. O gesto foi acompanhado de um esboço de sorriso que parecia mais um convite. Ela abriu a boca e perguntou: “qual o seu apelido?”

– Apelido? O que é apelido?, indagou Onofre.
– Apelido, oras. O meu é Jujuba, não porque me chamo Juliana, mas por adorar balas!
– Não tenho um apelido….
– Vamos criar um! Do que você gosta?
– Não sei.
– Hmmm, e como lhe chamam?
– De Onofre.
– E quem é esse do seu lado?
– Quem?

Onofre, sem entender o que ali acontecia, se surpreende ao aparecer, subitamente, um cachorro serelepe lambendo seus pés.
– Ele é lindo! Você já foi com ele na Árvore dos Desejos Impossíveis?
– Mas eu nem o conhecia…Árvore dos Desejos Impossíveis?
– É, eu …

Bem no meio da hesitação de Onofre, Jujuba agarrou sua mão e saiu correndo, com o cachorro atrás deles. Foi então que ele percebeu o que nunca tinha se dado conta: o quintal do casarão também se estendia para o lado esquerdo da porta principal.
Dizem que se a pessoa fica cega de um olho, depois de um período o cérebro iguala a visão a uma forma aproximada ao que era antes. Mas com Onofre isso não ocorreu. Talvez por ter acontecido tão cedo e seu cérebro não ter um registro consistente de uma visão com os dois olhos.

Não demorou muito para pararem de correr, mas ainda assim, Onofre estava cansado. As limitações da sua vida refletiam até no seu preparo físico. Apoiou as mãos nos joelhos para tomar fôlego, quando então, olhou para frente e finalmente viu o que Jujuba chamava de Árvore dos Desejos Impossíveis.

“É isso? Uma macieira? A tal Árvore dos Desejos Impossíveis é uma macieira?”, disse Onofre numa inegável reversão de expectativa. Jujuba, agora carregando três goiabas, sorri tenramente e explica ao seu novo amigo do que se trata a referida árvore: “Ela não é uma macieira, Onofre. A Árvore dos Desejos Impossíveis, na realidade, nem sequer é uma árvore. Ela só tem esse nome porque “produz” desejos, entendeu? Na verdade, ela se parece com o que você quiser que ela se pareça. E você, como viveu a vida toda nos limites do casarão, aprendeu a ver no mundo somente as coisas que existiam dentro do limite da propriedade. Provavelmente você se deixou levar pelo nome “árvore”. Tente de novo. Imagine que ela é outra coisa.”

Ou prefere ir direto para os desejos? – disse Jujuba, deixando transparecer toda sua ansiedade.
– Se essa árvore realiza desejos impossíveis, porque você nunca pediu para ver com os dois olhos? – desafiou, o cético Onofre.
– Porque eu não quero – Jujuba disse, sem pestanejar.
– Porque não?…
– Deve ser estranho ter os dois olhos funcionando ao mesmo tempo. Imagina… ver tudo em dobro…
Onofre parou para pensar. A princípio a ideia pareceu confusa, mas depois concordou que deveria ser estranho mesmo.
– Nosso olho apagado é o reserva – disse Jujuba, com ingênua convicção.
– Reserva?
– É, reserva. Quando o olho que a gente usa ficar gasto de tanto ver as coisas, ele vai apagar, aí o outro começa a funcionar. Novinho.
Onofre ficou pensativo de novo. Era outra ideia estranha da menina, mas que também fazia sentido.
– Então um dos meus ouvidos também deve ser isso. Um ouvido reserva! – Onofre se encheu de empolgação.
– Não, com o ouvido é diferente. O seu é quebrado mesmo.
Onofre colocou a mão no ouvido ruim e sua empolgação murchou.
– Mas sorte sua.
– Sorte minha? Sorte minha ter um ouvido quebrado?
– Claro. É horrível ter os dois ouvidos. Uma hora alguém te chama de um lado, depois alguém já te chama de outro, e se você não presta atenção em todo mundo, vem alguém e diz: não tá meu escutando? Tem dois ouvidos pra quê? – disse, Jujuba, imitando uma bronca.
Onofre ficou quieto, mas logo armou um pequeno sorriso nos cantos da boca. Olhou para um fruto da árvore que começava a se mexer, como se algo lá dentro quisesse rasgar a casca, e disse:
– Já sei o que vou pedir pra árvore, ou o que quer que isso seja.

– Quero morrer.

– Quê!? – Jujuba nunca ouvira um pedido daqueles. Uma coisa tão vazia como o olho que lhes faltava.
– Quero morrer e reviver. Nunca ninguém voltou para dizer se é bom, se é ruim, se tem gritos, dá medo ou todos estão de branco. E se essa árvore realiza todos os desejos. No mais impossíveis, quero morrer.
– Você não pode morrer. – disse Jujuba chorando de um olho….
– Por que não? E por que você chora? Você já morreu alguma vez?
– Não, nunca morri.
– Então! Deixa eu morrer e viver de novo. A árvore não faz tudo que eu pedir?
– Faz.
– Então eu vou pedir. Pode ser que a morte seja melhor do que a minha vida.
Jujuba fica sem resposta.
– Como é que se faz? Tem alguma frase, algum código pra fazer o pedido?
– Não, é só olhar pra ela e pedir.

Mesmo assim, Onofre esboça um tipo de ritual, meio que inventado na hora. Ele dá três passos à frente, deixando Jujuba para trás como mera espectadora. Ajoelha-se, une as mãos como quem vai rezar, com os dedos entrelaçados. Respira fundo e começa a formatar sua frase. Jujuba, sentada, também fica em silêncio completo. Coincidência ou não, o pouco vento que soprava cessa repentinamente, fazendo com que até mesmo a Árvore dos Desejos Impossíveis fizesse um momento de silêncio para respeitar a morte de Onofre.

Neste exato momento, o ouvido bom de Onofre mostra o quanto havia se desenvolvido para compensar o ouvido quebrado. Ele ouve gritos ao longe. Gritos de Margarida. Gritos de Clemente.
– Jujuba, você ouviu isso?

Margarida e Clemente se aproximavam a passos de canguru. O coração de Onofre pulava a passos de Canguru. E Jujuba virou verbo: saiu correndo com medo da reação de Margarida e Clemente. Onofre não sabia o que dizer:
– Eu… eu vim dar uma volta e acabei me perdendo.

Margarida, quase gritando, ordenou:
– Você vai voltar agora para casa com a gente. Vamos.

Então, arrastado à força por Margarida e Clemente, Onofre dava adeus ao lado de fora do casarão. Mas ele tinha o poder de conversar com o vento. E usou esse poder. Disse em voz baixa que gostaria de ser um pássaro. O vento levou as palavras de Onofre até a árvore que, a essa altura, já ia ficando para trás. Clemente e Margarida tomaram um susto. De repente, viram suas mãos segurando as asas de um gavião. Soltaram assustados. E Onofre saiu voando com a curiosidade de um presidiário recém-libertado.

A lenda de Onofre é contada em várias partes do mundo atualmente. Segundo ela, Onofre é um pássaro que ajuda crianças a ganhar a liberdade quando seus pais se mostram ditadores e hostis. E dizem por aí que o pássaro Onofre ainda vai aparecer um dia no lugar do logotipo do Google. Assim, todos vão aprender a lição: quem procura a liberdade, um dia acaba achando.

[Clique aqui para ver a página original].

2 Responses

  1. Clô♥
    Responder
    28 maio 2010 at 1:11 pm

    Adorei, achei genial, principalmente o fechamento da história.
    Parabéns a todos pela criatividade.

  2. Otávio F. Ramalho
    Responder
    31 maio 2010 at 9:09 am

    Fábio Cabral? O link leva para o perfil de um tal de Fernando Cabral. Tá certo isso, Ligia?

    Lígia Fascioni: Putz, foi mal mesmo, Otávio. Vou já arrumar! Obrigada pelo aviso!

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