A questão apareceu numa Live recente que fiz com o querido Eduardo Magrani há alguns dias (link para assistir aqui). Estávamos falando sobre storytelling e eu dizia que todos nós contamos histórias sobre nós mesmos; é a maneira como nos mostramos para o mundo.
E a gente se vale de objetos para nos representar nessa missão. Nós nos cercamos de coisas que nos ajudem a corroborar com a narrativa, que sirvam de auxílio para ilustrar a história pessoal que estamos contando aos outros.
Os objetos, sejam naturais ou fabricados, carregam histórias. As marcas sabem muito bem disso, tanto que o marketing e o branding usam o storytelling como ferramenta essencial de trabalho. São definidas as palavras-chave para fundamentar as histórias e toda a gestão de uma marca gira em torno desses conceitos.
Foi aí que veio a questão: o iPhone é um objeto que representa o luxo?
Bom, antes de mais nada, vamos definir o que é luxo.
Segundo o dicionário Michaelis: 1 Estilo de vida que se caracteriza pelo excesso de ostentação e pelo gasto com bens de consumo caros e supérfluos; fausto, requinte, suntuosidade. 2 Aparato faustoso, suntuoso; esplendor, magnificência, pompa. 3 Qualquer coisa dispendiosa ou difícil de se obter, que agrada aos sentidos sem ser uma necessidade.
O livro “Marketing do Luxo”, de Suzane Strehlau, explica que a definição não é tão simples e nem é um consenso, mas está sempre relacionada ao conceito de especial, caro e raro (ou de difícil acesso).
O genial Bruno Munari, no excelente “Das coisas nascem coisas”, completa: “Luxo é a manifestação da riqueza grosseira que quer impressionar quem permaneceu pobre (…) é o sentimento de domínio sobre os outros.”
Dito isso, vamos analisar um pouco o comportamento das pessoas que se cercam de marcas de luxo; que histórias elas querem contar?
Usando a citação de Munari, podemos inferir que esses consumidores eram pobres, passaram por dificuldades e agora estão num patamar de abundância. Querem mostrar ao mundo que superaram todos os obstáculos e venceram, pelo menos do ponto de vista financeiro. Ou, já sendo ricas, deixar claro que são especiais e fazem parte de um estrato diferente e privilegiado da sociedade, aquele que detém o poder e os recursos materiais.
Muitas marcas ajudam a contar essas histórias e trabalham o branding exatamente em cima desse “selo de privilégio”: Ferrari, Prada, Louis Vuitton, YSL, Tiffany, Hermés, enfim, essas todas que você conhece ou já ouviu falar.
Mas onde a Apple entra nisso?
Analisando as ações e comunicações da marca, veremos que a palavra luxo não aparece em nenhuma peça, explícita ou implicitamente; pelo contrário. Uma das bases da identidade da empresa é usar a tecnologia para inovar e simplificar, reduzindo tudo ao essencial (onde essencial é o exato oposto do luxo, que, por definição, é o supérfluo). O famoso perfeccionismo do fundador, Steve Jobs, empresta confiabilidade e qualidade aos produtos, assim como a preocupação estética.
Um adendo: não estamos aqui falando de funcionalidade, mas de simbolismo, ok?
Então, a pessoa que usa os produtos da Apple com o objetivo de complementar a sua história, na verdade quer dizer ao mundo o quanto ela é inovadora, cool, descolada, pensa diferente e é criativa. Se ela quiser mostrar apenas que é milionária e bem-sucedida, terá que usar outros objetos de apoio.
Observe: você pode ir em qualquer incubadora de startups ou faculdade de design e vai ver gente que economizou anos para comprar um MacBook. Estudantes e profissionais que andam com a calça furada e seu iPhone.
Eles não estão fazendo isso para parecer ricos, para alguém achar que eles têm muito dinheiro, entende? As pessoas se cercam desses objetos porque eles ajudam a contar a história de alguém criativo, cheio de ideias, que está atualizado com seu tempo. Tanto que você raramente vê esse povo usando ao mesmo tempo um relógio Rolex ou uma mochila Prada; esses sim, traduziriam luxo e não deixariam nenhuma dúvida.
Quando você observa um monte de gente com roupas baratas da H&M e Zara no metrô usando um iPhone, elas não estão querendo fingir que são ricas, senão usariam outros objetos mais óbvios e com uma mensagem mais clara para demonstrar riqueza. Elas querem parecer descoladas e inovadoras, que é a narrativa que a marca está vendendo.
Naturalmente que isso não impede ninguém de usar qualquer objeto mais caro do que a média para mostrar superioridade financeira. Suzane Strehlau é clara nesse aspecto: “algumas marcas podem trazer certo prestígio aos seus usuários, mas não são necessariamente um produto de luxo. Elas estão posicionadas entre o mercado de massa e o de luxo. Por exemplo, um café da Starbucks e a lingerie da Victoria’s Secret” (Nota: o livro dela é inteiro sobre luxo e não há uma única citação à Apple).
Essa prática parece ser mais comum em países onde há mais desigualdade, como o Brasil. É como eu ser milionária e ir visitar o primo pobre. Vamos no restaurante do bairro e peço o prato mais caro que existe, só para mostrar para meus convidados que sou muito rica. Perfeito. Mas isso não faz do Arroz Carreteiro Super Especial para 4 pessoas um objeto de luxo, entende? Apesar dele ter sido usado nesse momento para demonstrar riqueza porque era o objeto mais “premium” disponível.
É por isso que algumas pessoas usam os produtos Apple como distinção e status; só porque são, em média, mais caros que os concorrentes. No contexto da pessoa e de seu entorno, o objeto não foi criado para representar luxo, mas pode se prestar a esse papel, como qualquer outro na mesma situação comparativa. Mais ou menos como um tênis da Nike, que também não é um objeto de luxo, mas acaba por fazer o papel de um, se as pessoas ao redor só estiverem usando marcas baratas e desconhecidas.
Por último, o argumento mais forte sobre o posicionamento da marca: o iPhone XR foi o modelo de celular mais vendido em 2019 no mundo. Exato: o mais vendido no mundo.
Só isso já mata completamente o conceito de objeto de luxo, o que, por definição é algo raro e para poucos privilegiados. Imagina se a Ferrari fosse o carro mais vendido no mundo? Continuaria sendo considerado um objeto de luxo? Ou a Chanel vendesse mais que a C&A?
Resumindo, segundo essa linha de raciocínio, a resposta para a pergunta do título é não. O iPhone não é um objeto de luxo.
E você? Quais os objetos escolhidos para fazer parte de seu dia-a-dia que ajudam a contar a sua história? Eles estão coerentes com a sua narrativa?
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NOTA: Achei um texto em alemão em que autor vai por outro caminho, mas no final conclui que a marca não cumpre os requisitos para estar no panteão do luxo. Aqui: Weshalb Apple keine Luxus-Marke ist
ENIO PADILHA
Irretocável. E sem espaço para a polêmica, dados os argumentos e as definições apresentadas. Eu uso computador e telefone da Appel há 11 anos. Não tem nada de luxo. É pura produtividade. Vale cada centavo investido.
Obrigado, Lígia, por colocar neste texto as palavras que eu nunca consegui encontrar para explicar porque considero esses produtos insubstituíveis. Eu, que não tenho nenhum produto (nenhum!) das marcas mundialmente associadas ao luxo.
ligiafascioni
E nem estava falando da funcionalidade, apenas do aspecto simbólico!
Alex fonseca silva
Legal. Eu sempre digo isso. Como o objeto mais vendido do mundo. Com milhões e milhões de unidade pode ser, “para poucos.” Será que caberia discutir o que é “valor agregado”?
ligiafascioni
Em princípio, toda marca traz valor agregado, mesmo que seja simbólico. Penso que é só uma questão de posicionamento. Em vez do status relacionado ao luxo, o status relacionado à inovação…
Mara Darolt
Oi, Ligia…. Será que as versões do site russo Caviar onde encontramos modelos caríssimos e exclusivos de IPhones (acima de 50k), os tornam de luxo? Obrigada 😘
ligiafascioni
Oi! Olha, eu não conheço esse site. Mas é só olhar as definições de luxo que eu coloquei. O produto se enquadra nelas? Se sim, então são de luxo (geralmente, as coleções especiais e de edição limitada a peso de ouro cumpre os requisitos sim).
Andre
como nem tudo é preto ou branco, acho que iphone é sim “um pouco” de luxo… é um aparelho mais caro que os similares, que nao tem nenhuma vantagem tecnologica proporcional ao preço, em relacao a mtos concorrentes, mtas vezes é até o oposto… e mtas vezes é comprado apenas pela “marca”, pelo logotipo, pra que os outros saibam o que estamos usando. O marketing, a “historia”, as lendas, o culto a personalidade criaram esse desejo… Marketing de produtos “de luxo” geralmente nao fala do produto, das caracteristicas que justificariam a sua compra, mas usa associacoes subjetivas, o perfume com modelos atraentes, etc. Se o comprador do iphone morasse numa ilha deserta, onde nao houvesse ninguem pra admirar o fato de estar com um produto “cool”, provavelmente escolheria algo de custo beneficio melhor, com mais vantagens ojetivas, desempenho, compatibilidade com outros equipamentos, etc. Nesse sentido, a compra do iphone envolve ostentaçao, mesmo que uma ostentacao mais “acessivel” do que andar de Ferrari. Entao, é um “luxinho”, uma “frescura”…
Xicco Lemot
Lígia, vc é rara, por ser única e muito mais inclusiva q exclusiva. Para mim, cada palavra sua monta ou remonta um significado precioso, praticamente um adorno de pérolas negras, amarelas…
Vc é nosso luxo accessível. Sou seu “público de interesse” e vc meu mercado de interesse mútuo.
Obrigado por alargar minha borda do desconhecido com seus insigts tão relevantes!
ligiafascioni
Que coisa mais linda ler isso! Obrigada! <3
Ligia Fascioni
Olha, eu uso os produtos da Apple desde que o computador se chamava Mackintosh e continuaria usando mesmo numa ilha deserta. A minha escolha se dá pela funcionalidade; os sistemas operacionais são completamente diferentes na essência. Inclusive as capinhas do meu telefone sempre escondem a marca (não tenho o menor interesse que alguém saiba o modelo do meu telefone). Se você reler o texto com atenção, verá que eu disse que sim, há pessoas que usam esses objetos para se diferenciar do ponto de vista financeiro — mas não é o propósito e nem o posicionamento da marca.