Nos últimos tempos venho sendo assaltada por uma sensação incômoda quase toda vez que tenho a oportunidade de ver designers apresentarem seus projetos, sejam estudantes de graduação, pós-graduação, ou mesmo profissionais atuantes no mercado. Levei um tempo para identificar o problema, mas creio que agora o descobri.
É o seguinte: os designers estão se esquecendo das pessoas.
De onde consigo observar, a principal diferença entre a engenharia e o design (já disse isso aqui outras vezes) é a estética no seu sentido amplo. Tanto a engenharia como o design preocupam-se com o conceito, o projeto, a escolha dos materiais, o processo produtivo e o ciclo de vida do produto. Mas para a engenharia, o foco é a máquina e seu desempenho. Para o design, o foco é a pessoa, o ser humano (foi por isso que migrei da engenharia para o design; estava sentindo falta da estética).
Na sua origem, aesthesis significa aquilo que é sensível, que afeta os sentidos — como as pessoas sentem, vêem, cheiram, tocam e ouvem. Tornar a interação entre a pessoa e o objeto uma experiência útil, produtiva e prazerosa é função primordial de qualquer projeto executado por um designer; e isso, em última instância, é função da estética. Designers existem para servir as pessoas, tornar sua estada no planeta melhor e inclusive, ajudar a preservar o tal planeta.
Então, como explicar que que a etapa do projeto em que se pergunta, questiona, estuda e observa as pessoas, tem desaparecido das apresentações como que por encanto, sem deixar rastros? Até onde sei, as informações do usuário são parte fundamental e imprescindível do método projetual.
O profissional (sempre alegando falta de tempo) utiliza pesquisas secundárias e infere que já sabe o que é melhor para o usuário. Vamos fazer assim porque pesquisas científicas desenvolvidas por britânicos na Transilvânia concluíram que pessoas com esse perfil gostam disso; vamos fazer assado porque a tendência em voga em Adis Abeba aponta para esse caminho. E onde ficam as pessoas que vão usar o produto, aquelas de carne e osso, não as das estatísticas?
Já questionei isso algumas vezes, e a resposta azeda que sempre recebo é “na prática a teoria é outra“. É mesmo? Então por que o profissional que diz isso sempre tem (ou quer ter) um MBA no currículo? Desculpem, mas, para mim, quem usa uma teoria diferente na prática ou não aprendeu a teoria ou então leu e não entendeu nada. Profissional excelente usa a teoria sim, fundamenta seus conceitos sim e, principalmente, considera o método projetual uma referência importante. E pensa nas pessoas como seres humanos, não objetos abstratos ou números.
Outra desculpa já bem rodada é a clássica “falta de tempo“. Ora, penso que tudo é uma questão de como o profissional se organiza para trabalhar, como elege suas prioridades. Se ser excelente é prioridade, então não dá para fazer de qualquer jeito. Se o designer gasta sua vida e competência simplesmente correndo atrás dos prazos, sem nenhum controle da situação, corre o sério risco de perder a sua dignidade profissional e virar uma bela abóbora, que só faz rolar ladeira abaixo ao sabor a geografia.
O tempo é igual para todo mundo e alguns dos melhores profissionais que conheço encontram tempo para ler poesia, fazer música, praticar esportes e até, veja só, observar pessoas. Há até quem, não contente em apenas ler, inclusive escreva poesia. O que me faz lembrar o verso do genial Caetano que fala do poeta português na indefectível música Língua: “Gosto do Pessoa na pessoa“. Eu também.
E ainda acrescentaria que gosto mais ainda da pessoa no designer.
Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br
brunocochito
Lígia, adorei este texto.
Sua percepção do ponto fundamental do designer foi perfeita.
Há tempos busco algo que possa explicar de forma objetiva – e sem “silicones” -, o verdadeiro papel do designer na sociedade de hoje.
Parabéns!
eduardo m. e.
Lígia, belo texto!
Realmente acredito que o papel do designer é este! Mas não deixo de me perguntar: então porque existem no mercado produtos que não atendem a esta finalidade: não se esquecer das pessoas. Penso que muitas vezes o designer pode ser o responsável sim, mas nem sempre. Infelizmente muitas vezes o designer é vencido na disputa por um produto ideal, sob o ponto de vista do design. Nosso trabalho antes de mais nada é uma ação coletiva e o mercado está contaminado por pessoas que não entendem o “fazer design” e mesmo assim representam empresas importantes no panorama nacional. Muitas vezes o engenheiro ganha, quando apresenta um produto com menor custo de produção porém sem benefícios ao usuário. Então queria acrescentar que antes de mais nada o dever mais urgente do designer é conscientizar a sociedade sobre o nosso papel. Assim, será mais fácil atuar de maneira adequada e colocar em prática o que realmente aprendemos. O design no Brasil ainda não está consolidado, mas estamos no caminho. Acredito que concordem comigo.
Lígia Fascioni: Oi, Eduardo! Concordo com você, às vezes o mundo conspira contra os designers e as decisões são tomadas por gente que não entende design. Mas estou citando o comportamento dos próprios interessados. Se um designer faz isso, como exigir algo diferente de quem não estudou tão profundamente o assunto?
Ênio Padilha
Grande texto! Parabéns
Estará no nosso http://www.eniopadilha.com.br na segunda-feira.
Fatima
Gostei do texto. Eu sempre sonho com o dia que algum designer criar um selim macio, mais amplo, mais anatômicamente correto para combinar com um guidom e pneus que permitam a uma senhora de 60 aninhos andar numa bike que faça a diferença porque as do mercado são duras, muito altas e perigosas. Concordo que aliar conforto e funcionalidade num veículo de duas rodas para agradar uma idosa não é fácil, mas acho que seria um sucesso. Precisamos de estabilidade e conforto. As tais “magrelas” não animam uma gordinha de cabelos brancos, que adoraria andar numa bicicleta bem bolada. Ah e outra coisa: há uma marca de calçados que faz solas fofinhas mas comprei uma sandália de dedo (em couro, prateada, com pedrinha etc), que tem um espaço ínfimo, na sola, para acomodar a planta/dedão com joanete. Com o tempo a pele de todos nós fica calosa e doi se ficar apoiada no friso da sola. Alô designers das industrias de caçados! Nem todo pé é de princesa! E nós da plebe com é que ficamos? Eheheheheh …
Gostei muito do viés que a prosa de Ligia tomou. Penso que o designer poderá ser um profissional com grande força humanizadora porém essa coisa chamada mercado impõe-se massificando-nos, nos traduzindo em estatísticas querendo negar nossas individualidades.
Abraços gerais. Fatima
Cleide Coelho
Quero dizer que já se tornou um hábito ler seu blog todas as manhãs. Parabéns!!!
Silvia Zampar
Realmente, Ligia, tenho que concordar: as pessoas têm feito “o mais fácil”, sempre.
E o mais fácil é supor que já sabe o que as pessoas querem, é mais “curto” o caminho de só ficar diante do computador, como se criar envolvesse só isso, o criativo e a máquina.
Precisamos acreditar no nosso trabalho, cobrar corretamente para conseguir ter o tempo totalmente necessário para fazer o estudo correto para que a criação sirva a seu propósito e não para que as pessoas depois se prostrem à criação.
Erly Miranda
Sem palavras.
Uma aula, que eu guardarei e lembrarei.
As vezes nos tomam o tempo coisas que são fúteis, que nos fazem perder certa noção de tempo e espaço, porém há sempre algo que podemos fazer para que o trabalho flua com eloquência e essas coisas fúteis possam ser dissipadas.
O tempo as vezes é um inimigo, e muitas desculpas já foram ditas em respeito o porque o job não foi entregue no prazo. São vários empecilhos diários, mas concordo com você, que a questão do material a ser utilizado em determinada embalagem interferi no processo criativo.
Muito obrigado Lígia.
Felipe Arcoverde
Ótimo texto Lígia.
Também penso que os designers estão esquecendo das pessoas, alias todo mundo esta esquecendo a se próprio, os valores estão invertido. Estamos vivendo em um mundo completamente desequilibrado e como você disse, os designers existem para servir as pessoas, tornar sua estada no planeta melhor e inclusive, ajudar a preservar o tal planeta. É como Charles Bezzera diz em seu livro “O designer humilde” …só designers humildes podem consertar os problemas que estamos presenciando…
Obrigado e abraços.
vik
Adorei o seu texto.
Concordo plenamente que há um certo desumanismo predominando no
design de forma geral.
Obrigado.
Espero que visite meu blog: http://vikdias.blogspot.com/
Carlos Zardo
Excelente texto!
Porém por vezes, tenho a sensação que o CLIENTE está se esquecendo dos CONSUMIDORES, ou seja, seus clientes.
Prazos apertados, falta de verba para remuneração adequada e pouca valorização do trabalho tornam o design cada vez mais pasteurizado.
Sucesso!
Caio
Por favor, participem de nossa pesquisa para a elaboração de um projeto de Revista de Design.
Inicialmente é apenas uma proposta acadêmica, mas existe a chance de levarmos a ideia adiante, nos ajudem!
https://docs.google.com/spreadsheet/formResponse?formkey=dDBkZzZWNjFrdm1xOWpjTkFNajlDb0E6MQ&theme=0AX42CRMsmRFbUy0xMGJlNDQxZS1jZjM4LTQ5NmEtODdjYS05NDIzNDBmYzdmNmM&embedded=true&ifq
Obrigado, desde já!
Qualquer dúvida, basta perguntar!