Tendenciosa, eu?

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O bom de dar disciplinas novas é que a prática se torna uma divertida maneira de aprender mais sobre algum assunto. Para cada aula a ser dada, é preciso estudar pelo menos 2 ou 3 livros, além de outras referências. Por isso é que eu não vejo o menor cabimento professores dizerem que “ensinam”. Mais do que tudo, aprender é a nossa especialidade.

Tenho investido as últimas semanas na preparação de um curso sobre prospecção e análise de tendências em design e só por isso tive a maravilhosa oportunidade de ler “Observatório de sinais: teoria e prática da pesquisa de tendências”, de Dario Caldas.

A curiosidade começa com a origem da palavra tendência, que vem do latim tendentia que significa “tender para”, “inclinar-se para”, “ser atraído por”. O autor lembra que a palavra traz a embutida a idéia da incerteza do resultado a ser alcançado, uma vez que a força apenas aponta para uma direção, sem, necessariamente atingir um fim.

Caldas vai desenrolando a evolução do uso da expressão até chegarmos ao que ela é hoje, onde tendência praticamente adquire o sentido de profecia. O autor vai explicando como isso tem a ver com a eterna angústia humana do medo do desconhecido. Qualquer coisa que lembre futurologia e descreva o que vai acontecer serve como calmante para nossos cérebros aflitos. Isso pode vir da religião, de promessas políticas, de supostos videntes e até da ciência, não importa. Para suprir essa insegurança, estamos agora a crer nos “gurus de tendências”, sejam eles “autoridades” da moda, do marketing, do consumo, das finanças ou da administração de negócios. O que torna a coisa toda confiável é o tom assertivo que essas figuras usam para declarar suas certezas.

Caldas relaciona com muito fundamento a palavra tendência com a doutrina positivista, do filósofo francês Auguste Comte. O positivismo baseava-se na idéia de que o mundo está em constante evolução e tende inexoravelmente para uma civilização mais avançada (ôba, eu sempre quis usar a palavra inexoravelmente num texto!). Segundo essa corrente, o progresso é uma lei geral e inevitável, e, baseado nesse conceito, Comte construiu uma escala de evolução dividida em etapas, onde o a civilização mais avançada, vejam que coincidência, era a burguesia ocidental branca européia do século XIX. Foi daí que surgiu o conceito de “país desenvolvido” (por que não “país rico”, mais simples e exato?) e a gente ficou com essa mania de dizer que uma coisa legal é “de primeiro mundo”. A doutrina vingou tão bem aqui abaixo do equador que até os dizeres da nossa bandeira, o tal “ordem e progresso”, são, na verdade, um slogan positivista. Bem que essa frase sempre me pareceu importada, completamente desconectada da nossa identidade…

A relação entre o positivismo e o “tendenciosismo” são claras: os dois aparecem como profetas que eliminam as incertezas do futuro. Assim, a gente não se espanta mais em ouvir declarações tidas como verdades certas do tipo: “no verão se usará amarelo”, “as bolsas vão subir em janeiro” ou “as pessoas vão comprar mais pipoca em 2009” em vez de “tudo leva a crer que o amarelo vai fazer sucesso”, “há grandes chances da bolsa subir em janeiro” ou “o consumo de pipoca está crescendo”. Na moda, a questão é resolvida quando os atores da cadeia têxtil se organizam e ditam o que vai ser usado (o que descaracteriza completamente a palavra — na verdade, eles não ditam tendências, mas fornecem referências para os profissionais da área). Isso influencia quase tudo, pois a moda, o design, arquitetura, a decoração, a arte, todos coadunam entre si para traduzir o espírito de um tempo, de maneira que é impossível desconectá-los no cenário.

Só que o mundo ficou mais complicado, com muito mais atores e variáveis. Sinais (elementos indicadores de tendências reais de mudança de comportamento) aparecem por toda parte. A globalização, de certa maneira, aumentou a complexidade das coisas, de modo que hoje não dá para indicar uma tendência mundial, mas várias e destacadas microtendências. Além do mais, as coisas já não são mais tão simples como no auge do positivismo: não existe mais um único e certo caminho a seguir. As diferenças são reconhecidas e as opções se multiplicam o tempo todo.

Caldas mostra que o observador de sinais precisa ter ampla cultura geral e muita informação, além de uma grande capacidade de análise e síntese. Mas com método e uma parcela importante de intuição é possível identificar tendências de fundo, aqueles fatos e comportamentos que irão influenciar os objetos e o consumo nos tempos que seguem. Não é porque o trabalho é difícil que ele não precisa ser feito. É essencial recolher e interpretar as pistas do que está por vir, mas igualmente importante é destacar que a parcela de incerteza não foi eliminada.

Não vou contar mais para não perder a graça. Além disso, não quero parecer tendenciosa…

Ligia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

6 Responses

  1. Melissa
    Responder
    3 dezembro 2008 at 5:40 pm

    “aprender é a nossa especialidade”. Adorei esta frase. Nunca li nada que resumisse tão bem a profissão de professor. Melhor que esta só outra, de um filósofo (Sêneca?) “se tenho prazer em aprender é para ensinar”.
    Ler teu blog é um prazer! Muito bom! Abç!

    • ligiafascioni
      Responder
      16 fevereiro 2014 at 2:43 pm

      O prazer é todo meu, Melissa 🙂

  2. 15 janeiro 2009 at 1:16 pm

    Adorei esse seu texto, li vários artigos sobre Microtendências ultimamente, e parece que as idéias (estou tendo problemas em aceitar a tal “ideia”) do livro citado tem muito em comum com o que eu li sobre o tema.

  3. Graça Taguti
    Responder
    4 maio 2018 at 4:33 pm

    Querida! Leia Vestígios do Futuro, do Dario Caldas, lançado em fins do ano passado. Gostei tanto que acabei por ministra-lo no meu curso de antropologia e comportamento do consumidor. Leia correndo, antes de sua viagem ao Brasil, agora. Aproveite e passeie um pouco sobre alguns termos dentre os que aprendi com ele. ” Capitalismo Fofo” encabeça uma lista de descobertas! Beijos!

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