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Utopia

Estava fazendo um exercício de futurismo para um projeto no qual estou trabalhando, quando a tarefa era imaginar um futuro preferido (aquele que eu gostaria muito que acontecesse de verdade). Comecei a pensar e me ocorreu que talvez fosse interessante reler o clássico Utopia, de Thomas More. 

Eu já tinha lido logo que entrei na universidade, aos 18 anos, então não me lembrava de quase nada. Eis que, ano passado, passando por um mercado de pulgas, encontrei uma versão maravilhosa em alemão, capa dura, formato grande e ilustrações incríveis. Levei esperando a oportunidade de exercitar a leitura nesse idioma. Então é chegada a hora.

O volume “Utopia”, de Thomas Morus (o sobrenome está grafado assim, no original em latim) e ilustrações de Michael Pretchl é uma verdadeira joia.

Mas vamos à história, que é narrada em primeira pessoa pelo próprio autor, que era diplomata, tradutor e conselheiro do rei britânico Henrique VIII; também foi advogado famoso por sua atuação em tribunais. Ele também teve cargos políticos e era íntimo da realeza europeia. 

Quando começa o livro, ele está acompanhando alguns nobres em Bruges, na Bélgica, onde conhece Peter Aegid e se encanta com a simpatia e simplicidade do moço. Anos depois, ambos se encontram em Antuérpia, e Peter está conversando com um homem mais velho, queimado de sol, barba espessa e vestindo roupas que ele imagina ser de um marinheiro. 

Peter lhe apresenta Raphael Hylodeus, filósofo português que participou de 3 das últimas 4 viagens de ninguém menos que Américo Vespúcio. Raphael, fluente também em grego, latim e inglês, viajou o mundo todo de era uma verdadeira biblioteca de histórias para contar.

Depois de um tempo de conversas, Thomas e Peter dizem que Rafael poderia ser um ótimo conselheiro para o rei, ao que ele retruca: ele seria péssimo conselheiro, pois reis não gostam de administrar e de ouvir verdades inconvenientes. Além disso, reis se interessam maioritariamente por guerras e poder, e ele não entende (e não tem o menor interesse) de estratégias militares.

Logo depois, Rafael já mostra a que veio quando discute com o cardeal Johannes Morton, que vem com aquela conversinha que ninguém quer trabalhar e por isso escolhe roubar e ser bandido, e que as penas para roubo deveriam ser mais pesadas — até mesmo a pena de morte (o que dizer desses “cristãos”, né?).

Rafael discorda com ótimos argumentos; ele diz que a morte seria uma pena muito pesada para um simples roubo e, para quem não tem o que comer (a morte já é relativamente certa), essa ameaça não seria suficiente para impedir o ato. Melhor seria garantir que essas pessoas tivessem trabalho com salários justos, que suprissem as necessidades básicas, ao menos. E que o Estado que se preocupa em punir, age como um mau professor, que se concentra mais no castigo do que no ensino.

Rafael ainda diz que muita gente quer trabalhar e não consegue — seja porque foi ferido na Guerra (quando dedicou sua vida ao Estado), seja por doença ou velhice. Ele fala até dos lacaios dos nobres, que viviam de puxar o saco e mimar o senhorio, mas ficavam totalmente à deriva quando eles morriam, sem saber o que fazer da vida.

É uma coisa que sempre penso; por que as pessoas não se incomodam tanto quando ricos roubam? Esses realmente não teriam motivos justos — a vida deles não está em risco por falta de comida ou moradia. É só ambição desmedida e ganância.  

Há muitas discussões do tipo na primeira parte, onde eles tratam desses e temas do dia-a-dia da Inglaterra no século XVI (o livro foi escrito em 1516) com uma forte crítica sobre como as coisas funcionavam, a questão dos nobres que não trabalhavam e exploravam o trabalho das pessoas simples, a acumulação de riqueza, a miséria, os monopólios, a corrupção, enfim, nenhuma novidade, pois o mundo não parece ter mudado muito.  

É um livro bem filosófico e confesso que bem difícil de ler em alemão. Com certeza perdi sutilezas e partes importantes, mas acredito que tenha conseguido pegar a essência (graças também a algumas partes que me lembrava quando li pela primeira vez em português, há mais de 30 anos). 

A segunda parte é a Utopia propriamente dita, onde Rafael, o viajante, conta sobre essa Ilha que ele conheceu e que as coisas funcionavam de maneira completamente diferente, quase perfeita (segundo seu olhar).

Inclusive o termo utopia foi cunhado a partir desse livro, pois esse é o nome da tal ilha onde tudo é harmonioso, justo e bom.

Vamos ver então o que Rafael nos conta e descobrir se você também acha que essa seria uma maneira perfeita de viver.

ECONOMIA E SOCIEDADE

Com relação à economia, Rafael conta que não existe propriedade privada; tudo é de todo mundo e todo mundo cuida (ao contrário de onde nada é de ninguém, e ninguém cuida). Para evitar o apego, as famílias trocam de casas a cada 10 anos — essa eu iria sofrer um pouco; mas se eu pudesse pintar a casa toda a cada mudança, talvez fosse divertido. Se bem que não sei, no livro as casas são padronizadas para não haver comparações.

Todos trabalhariam um pouco, de maneira que não ficasse pesado para ninguém (e não haveria nobres ou milionários que simplesmente vivem do esforço alheio). Mas a parte que não gostei é que todo mundo se vestiria igual e de forma modesta. 

Essa parte realmente me pegou. Apesar de não me importar tanto com a questão da propriedade, eu não vejo espaço nessa utopia para a individualidade e nem para a arte nesse cenário. E o que seríamos nós sem a arte, seja em roupas, casas, cabelos, música, objetos, acessórios ou qualquer outra forma? Acho que apenas formigas bem organizadas.

Eu não conseguiria ser feliz num ambiente uniforme, onde as pessoas excêntricas não pudessem se expressar, onde tudo fosse bege para não chamar atenção… Vejo as diferenças como uma das coisas mais interessantes do mundo, apesar de acreditar que elas seriam mais importantes se todos tivessem acesso ao básico.

Então, para mim, todo mundo deveria ter direito a casas e roupas, porém, poderiam customizá-las como quisessem. Acho que brilhar é um direito humano básico…rs (vai aqui minha primeira reforma nesse sistema…).

GOVERNO

Em Utopia, o regime de governo é o democrático, onde os representantes do Estado são eleitos. Sinceramente, acredito que isso não resolve tudo, como estamos vendo. Minha “reforma” seria a obrigatoriedade de um curso preparatório que incluísse conhecimentos gerais (finanças, administração, economia, saúde, transporte), mas também filosofia, arte, geografia e literatura — e com uma prova oral antes da pessoa ser habilitada a se candidatar. 

Em Utopia, o foco sempre é o bem estar de todos e o conflito mínimo (minha porção libriana adorou essa parte — apesar de achar que, às vezes, conflitos são necessários para manter a justiça). 

Mas pelo que entendi, os conflitos aos que o autor se refere são os relativos à violência. Pessoalmente, sou contra a violência, mas como diz a Déia Freitas, do podcast Não Inviabilize, às vezes uma cadeirada pode ser indispensável, dependendo da situação…rsrs

COTIDIANO

Em Utopia, o povo trabalha pouco — então sobra bastante tempo para estudar, ler e discutir ideias (amei!). 

Sobre religião, cada um pode acreditar no que quiser, desde que não impinja sua fé aos outros e não viole as regras da sociedade. Mas, pelo que entendi, a pessoa não podia ser muito diferente das outras, o que me incomodou um pouco.

Fico com a impressão que as pessoas de Utopia gastam o tempo se autocontrolando para todo mundo caber na mesma caixinha e ninguém escapar do rótulo. Não vejo como poderia ser feliz num lugar assim.

CONCLUSÕES

A única espécie de arte que Rafael cita no livro praticada em Utopia é a música, mesmo assim, produzida de maneira bem utilitária, com um propósito bem funcional, só para diversão mesmo.

Também não consegui encontrar (e isso pode ser culpa da minha leitura) a figura do artista profissional, pois isso estaria diretamente ligado à vaidade. Gente, como assim? Uma sociedade sem arte, sem diferenças de pensamentos e pontos de vista, sem VIDA?

Na minha Utopia, teríamos renda básica para todo mundo, assim como acesso a moradia, saúde física e mental, comida, transporte e educação. Enfim, o necessário para qualquer pessoa viver com dignidade. Mas o básico. 

A partir daí, cada um usaria seus recursos para  levar a vida de acordo com seu propósito. Não quer trabalhar? Fica no básico. Quer empreender? Divirta-se! Quer estudar e compartilhar o que aprendeu? os recursos estão aí! Quer produzir arte, qualquer que seja a sua forma? Vamos lá!

Por mais que muita gente duvide, a maioria das pessoas iria trabalhar sim — não tantas horas, claro, mas penso que todo mundo é mais feliz se consegue entregar algum tipo de valor para a sociedade. Eu, por exemplo, continuaria fazendo exatamente o que faço, mesmo se fosse milionária. Não tem a menor graça viver eternamente de férias.

Lembrei de uma outra utopia que li há alguns anos chamada “Der Rote Planet” (Tradução livre: “O planeta vermelho”), de A. Bogdanow. Achei-a mais detalhada e com algumas coisas bem interessantes. 

Por ora, fiquem com a maravilhosidade que é esse livro ilustrado (aqui algumas imagens só para dar uma ideia!).

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