Não me lembro da primeira vez que vi esse livro; foi em alguma rede social, com alguém recomendando. Depois, por algum motivo, a @jumorju apareceu para mim no Instagram. Ela fala principalmente sobre livros e mora em Berlim, então acredito que esse tenha sido o motivo inicial da conexão. A moça é quietinha e fala baixo (adoro gente que fala baixo, na vida real quase não consigo) e tem dicas interessantíssimas.
Pois qual não foi a minha surpresa ao receber um convite das Janaínas, uma ONG que apoia mulheres imigrantes aqui em Berlim, da qual sou fã e parceira, para o lançamento do livro “Acho que vamos todas para o céu”, da Júlia da Silva Moreira. No evento, também tinha o livro “Neca“, da Amara Moira. Em comum, os dois livros falavam sobre a vida de mulheres transexuais, como as autoras.
Pensa num encontro inspirador! Uma comunhão de mulheres reunidas para se auto apoiar com muito amor envolvido. Na oportunidade, não pude deixar de comprar os livros.
Então vamos à história da Júlia, que é uma autoficção, ou seja, em parte baseado na vida real da autora e em parte na imaginação; jamais saberemos qual parte é qual (e aí está a graça).
O livro é narrado pelas duas protagonistas, Júlia e Luana. Elas nasceram em locais distintos e foram se encontrar no final da adolescência. Aí nasceu a amizade mais linda e profunda de todas, um encontro de almas, irmãs e parceiras de vida.
Júlia nasceu Ricardo em uma família muito religiosa. O pai, apesar de morar na mesma casa, mal se comunicava com ela. A mãe preocupava-se com a igreja e com o que os outros iriam pensar, nessa ordem. Quando, aos 3 anos de idade, Ricardo disse para a mãe que preferia ter nascido menina, ela fingiu que não ouviu, e tentou ignorar todos os sinais daí em diante.
Sonhando com um corpo que não podia ter, brinquedos que não podia brincar, e roupas que não podia vestir, com 9 anos Ricardo vestiu uma fantasia de borboleta que alguém deixou na sua casa para a mãe costureira consertar e saiu para o carnaval, feliz como nunca tinha sido antes. Pela primeira vez entendeu quem era ela: Júlia.
Quieta, sempre sozinha, lendo ou desenhando, se escondendo pelos cantos, Júlia foi sobrevivendo ao bullying, ao deboche na escola, à indiferença dos professores, até que, aos 15 anos, quase 16, o irmão lhe deu uma surra e a colocou para fora de casa, com a anuência da mãe (não me venham com essa conversinha que amor de mãe é incondicional — não mesmo).
Sozinha, com uma mochila nas costas, seu único contato era Luana, apenas poucos anos mais velha, que morava em São Paulo. As duas tinham conhecido por meio de seu blog.
Luana também tinha sofrido bastante, com a diferença de que a mãe, mesmo amedrontada e meio sem saber o que fazer, a amou e a apoiou. Infelizmente, a menina ficou órfã cedo. Um tio se apoderou da casa e, como batia muito nela (para “aprender a ser homem”), não teve outro caminho a não ser fugir.
Muito jovens, ainda sem terem terminado os estudos, sem ninguém que lhes desse um emprego, as duas tiveram como a única opção de sobrevivência a prostituição.
A autora descreve a rotina, os sonhos, os perigos e as injustiças das duas meninas nas ruas da cidade. Luana, já estabelecida, acolheu Júlia como a uma irmã; cuidou dela, deu apoio, ensinou os truques da profissão, os cuidados, e mais do que isso, incentivou Júlia a continuar os estudos.
Na formatura do supletivo, ninguém da família biológica compareceu — só sua família de travestis, todas felizes com a conquista.
É muita dor e injustiça o que essas pessoas passam. Eu não consigo sequer imaginar o tanto que a minha vida foi mais fácil pelo simples fato de que meu cérebro e meu corpo são compatíveis. Mas a neurociência já estudou isso — não entendo porque é tão difícil para as pessoas entenderem que a pessoa nasce assim; não é uma escolha.
Quem escolheria uma vida tão difícil assim de propósito? Ainda mais nascendo homem, um gênero que tem todas as vantagens, do jeito que o mundo é organizado e dirigido?
A orientação sexual de uma pessoa em nada afeta ou impacta a vida das outras, não tem nenhuma justificativa lógica ou racional para alguém se incomodar tanto. Mas justificativas psicológicas, porém, há muitas. Inclusive os maiores clientes dos travestis são os chamados “cidadãos de bem”, casados, religiosos e com filhos — isso não é segredo para ninguém. Por que será que são esses os maiores incomodados, né?
Júlia (a autora e a personagem) pegam na nossa mão e vão nos levando para um passeio nesse universo, onde o mundo faz de tudo para dificultar a vida, humilhar, espezinhar e matar pessoas como ela.
A condição de travestis, na verdade, é apenas o pano de fundo dessa história. Para mim, a amizade entre as duas, a pureza dos sonhos, a união desses dois corações é essência e a parte mais bonita.
Tem até um trecho onde Júlia conhece Lygia Fagundes Telles numa sorveteria e elas acabam se tornando amigas próximas (Júlia estava lendo um livro, como sempre, e chamou a atenção da famosa autora). Lygia inclusive convence Júlia e Luana a adotarem um gatinho (escritoras e gatinhos; como pode ser melhor?).
A história vai se desenrolando até as duas ficarem velhinhas e abrirem uma livraria na Espanha — dá um quentinho no coração esse final (estou dando spoiler, mas nesse ponto não é a sequência que interessa, mas a delicadeza da narrativa, o caminho irregular que vamos percorrendo e acompanhando os desdobramentos).
Se você quer ampliar seu repertório, conhecer outras histórias e pontos de vista, passar umas horas com essas duas que parecem nossas amigas de muito tempo, recomendo muito a leitura.
E olha, estou vendo esse final como uma profecia auto-realizável. Júlia vai longe como escritora. Estou aqui na torcida!
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