Imagine que você está concentrado tentando escrever um livro e briga com o vizinho do apartamento de baixo por causa do barulho. No calor da discussão, ele joga um ovo na sua janela e você revida despejando o conteúdo da sua lixeira de papel no pátio dele; a história vai parar na delegacia.
Dias depois, quando estão levantando a sua ficha corrida (deve ser procedimento comum nesses casos), você recebe um telefonema com um aviso: acharam sua certidão de óbito. Sim, você está morto. E já faz três anos.
Essa história aconteceu de verdade com o escritor brasileiro João Paulo Cuenca.
Com a ajuda de um amigo jornalista, Cuenca começa a investigar o mistério; um morador de uma ocupação no Rio de Janeiro morreu com a sua certidão de nascimento original no bolso (daí o atestado de óbito). Pesquisando mais, ele descobre relações suspeitas com a polícia civil e militar, políticos e milicianos envolvidos no caso (Rio de Janeiro, né?).
Pois tive a sorte de participar de uma oficina literária semana passada, em que João contou seu processo criativo e o parto que foi escrever esse livro. Apesar de reservado, ele pareceu acessível e ficou quase duas horas discorrendo sobre a obra e respondendo às perguntas. A primeira coisa que me veio à mente (e à de muita gente, claro) foi: que ótimo essa história ter acontecido justamente com um escritor; impossível não virar livro.
Pois ele contou que resistiu o quanto pôde à ideia de publicar a experiência porque sabia que teria que se expor de maneira muito profunda e aberta. No final, foram quase quatro anos entre o fato ter acontecido e o livro ter sido lançado. Quatro anos perturbadores, difíceis, confusos, arriscados.
O livro é narrado em primeira pessoa e o que se vê é um homem autocentrado num nível de empatia equivalente a um psicopata. Ele simplesmente não dá bola para os sentimentos de ninguém. Nem mesmo os dele. Uma pessoa atormentada, que vê absurdos acontecerem e se sente impotente. Alguém que descarta pessoas, que se isola a ponto de sumir a caminho de um compromisso profissional sem avisar ninguém, deixando que todos (pais, esposa, amigos, parceiros) imaginassem que ele estava morto por meses. E ele estava mesmo. Em todos os sentidos possíveis.
Durante o processo criativo, Cuenca produziu um curta metragem que ganhou prêmios (trailer disponível nesse link aqui). No workshop ele falou do desafio que é o artista se fundir com a obra numa espécie de experiência auto-ficcional, onde o autor está sempre em estado de performance pública, seja nas redes sociais, seja vivendo uma vida real interessante o suficiente para valer a pena ser contada.
Ele apresentou diversas questões interessantes: será que não estamos todos vivendo numa espécie de forma auto-ficcional pós-moderna, onde somos autores da nossa própria obra, sempre pensando em como ela será narrada? Ele está fazendo uma residência artística em Berlim e se pegou, por exemplo, questionando-se se faria esse ou aquele caminho imaginando qual dos dois renderia um relato mais interessante. Será que em tempos de redes sociais, não seremos, em algum nível, todos assim?
É claro que obras autobiográficas sempre existiram, mas em geral elas se limitavam a um meio estanque (um livro, um quadro ou um filme). Mas as redes sociais desdobraram os veículos de tal maneira que, para os artistas, é preciso recontar e reinventar a história infinitamente, em tempo integral.
Uma reflexão interessante, pois já me peguei pensando: será que aceitaria viajar, sei lá, para um lugar bem exótico ou até para outro planeta, com a condição de que não pudesse tirar nenhuma foto? Minha resposta seria sim, sem dúvida. Mas ficaria muito angustiada se não pudesse compartilhar essa experiência com ninguém, mesmo se fosse alguém bem próximo, contando ou escrevendo.
A forma como a gente narra nossa própria história tem a ver com a maneira como a gente encara a vida; no processo, desenvolvem-se os filtros que servirão de referência para a nossa memória. Se a gente não anota ou fotografa, esquece. E esquecer é como um não-viver. Na verdade, compartilhar é uma experiência mais rica porque gera feedbacks e colaboração de outros olhares; mas se isso não for possível, escrever a história, mesmo que ninguém a leia, já vale bastante, pelo menos para mim. De alguma forma me identifico com o autor; preciso registrar e expressar o que vivo como uma maneira de dar sentido à minha existência. Será que também sou um pouco artista? Não seremos todos?
Mas deixando as divagações de lado e voltando ao “Descobri que estava morto”, do J. P. Cuenca, vale muito a pena fazer essas reflexões; sou grata ao autor por essa oportunidade.
Mas, de verdade, é preciso se preparar para a viagem, que, apesar de curta (dá para ler em poucas horas), é bem desconfortável. Achei o livro pesado e intenso. Perturbador, cru, violento, doloroso. Mas muito bem escrito.
É uma pena que só o tenha comprado (com direito a dedicatória) no dia da oficina. Senão teria muito mais perguntas a fazer. Principalmente sobre o capítulo final da história, que ficou faltando.
NOTA: Sou muito grata ao Edney, da A Livraria, um produtor cultural que faz as coisas mais maravilhosas acontecerem. O workshop, assim como vários eventos em Berlim, foi gratuito e todo organizado por ele e seus parceiros de projetos.
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