Uma das coisas que acho mais luxuosas em Berlim é ter uma livraria inteira especializada só em ficção científica. Pois foi lá que encontrei esse tesouro: “The Echo Wife” (deixei no original porque a tradução seria algo como “a esposa eco”, o que não faz muito sentido), da genial Sarah Gailey.
Eu não conhecia ainda essa já premiada autora, e “The Echo Wife” é sua obra mais recente, publicada no ano passado.
Tudo começa com Evelyn Caldwell, uma brilhante geneticista, ganhando o maior prêmio de sua área por conta de suas pesquisas com clones. Ela recém se separou do marido e, apesar de feliz com o reconhecimento, está com o coração aos pedaços.
Nathan parece ter sido o único amor de sua vida. Eles foram colegas de faculdade, mas, enquanto ela almejava uma brilhante carreira em pesquisa e foi em busca de financiadores na iniciativa privada, Nathan resolve virar acadêmico. A questão é que ele ama o brilhantismo da companheira, mas, no final das contas quer mesmo uma esposa e filhos; a perfeita família tradicional onde ele é o chefe.
Evelyn nunca sonhou em ser mãe e tudo se desmorona quando ela descobre que o marido leva uma vida dupla. Visitando a outra casa dele, ela se depara consigo mesma abrindo a porta. Pois Nathan criou Martine, uma clone da própria Evelyn, mas com algumas características que ele gostaria que ela tivesse: Martine é submissa, dócil, gentil e absolutamente dependente.
Chocada, Evelyn desmascara Nathan e ele sai definitivamente de casa. Ela também se muda, destruída (fico só imaginando se o seu par fizesse uma versão sua “melhorada” do ponto de vista dele!). Imersa em pesquisas no seu laboratório (ela desenvolve clones para reposição de órgãos, mas não os considera humanos), recebe um telefonema de Martine. Sem saber exatamente por que, vai encontrá-la.
O choque vem quando ela percebe que Martine está grávida (até então, Evelyn acreditava que clones não podiam engravidar, pois esse não era o objetivo de sua pesquisa). Aí percebe-se que a clone começa a resistir um pouco ao algoritmo e buscar sua independência, pois no encontro com Evelyn, o objetivo era saber se o seu desejo por crianças havia sido programado ou era genuíno. Martine, apesar de suave e diplomática (o oposto de Evelyn), é muito inteligente e começa a ter dúvidas existenciais (ela sabe que é um clone, mas quer entender melhor sua existência).
Há toda uma reflexão sobre o que exatamente vem a ser o livre arbítrio; o quanto somos condicionadas pela cultura, pelo ambiente social e pela biologia.
Logo depois, Martine volta para casa e conta para o marido sobre o encontro. Enfurecido (não quer que sua mulher perfeita tenha iniciativa própria e dúvidas desnecessárias), ele tenta matá-la com uma faca de cozinha. Numa manobra, a moça se esquiva e acaba assassinando-o sem querer.
Martine liga imediatamente para Evelyn procurando ajuda, apavorada. Não explica o que aconteceu, mas a cientista percebe que é algo muito grave. Tecnicamente, Martine não existe como ser humano, não tem amigos, não tem documentos e não sabe como o mundo funciona. Ela está em estado adiantado de gravidez e desconhece o que pode acontecer com ela.
Evelyn chega numa casa onde a cozinha está banhada em sangue, o marido virou um cadáver, a clone está em estado de choque e ela precisa fazer algo.
Apesar de Martine não ser obra de Evelyn, ela é resultado de suas pesquisas que o marido roubou para seu próprio proveito.
Agora temos vários problemas: Evelyn pode ser acusada de crimes contra a ética científica; tem a questão do assassinado do marido (em princípio, clones não matam) que pode virar um prato cheio para jornais sensacionalistas e colegas cientistas que têm ciúmes e inveja de suas conquistas. Todo o trabalho profissional de uma vida inteira está em risco (nem se fala na vida pessoal). E agora?
Olha, só posso dizer que há várias reviravoltas, plot twists e muita coisa para se pensar. Os personagens são muito bem construídos e a narração de Evelyn em primeira pessoa traz também flashbacks de sua infância de filha única passada sob o domínio de um pai abusador e de uma mãe passiva.
Uma obra e tanto. Recomendo muito.
NOTA: A última parte do livro, geralmente dedicada aos agradecimentos, é quase um conto. Um conto chocante.
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