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Os mitos da criatividade

Estamos, a Marília Lobo e eu, desenvolvendo um produto novo sobre criatividade. Nós duas já temos muita bagagem sobre o tema; então estou pegando os livros dela, e ela, os meus, para a gente dar uma nivelada (é muita coisa MESMO, dos dois lados). Afinal, a gente trabalha, mas também tem que se divertir, né?

Pois bem, na nossa última reunião eu vi “The myths of creativity: the truth about how innovative companies and people generate great ideas” (tradução livre: “Os mitos da criatividade: a verdade sobre como empresas e pessoas inovadoras geram grandes ideias”), de David Burkus, na estante dela. Não me restou outra opção: levei.

MITOLOGIA 

O autor começa dizendo que há uma mitologia que cerca a criatividade. E que mitologias são histórias, geralmente muito antigas, que tentam explicar porque certos fenômenos misteriosos acontecem e como a gente deveria pensar e se comportar a respeito deles.

Assim, como natureza, a vida e a morte, o fenômeno da criatividade sempre foi misterioso; para isso então os gregos criaram as musas para tentar explicá-lo.

AS MUSAS

As musas ouviriam as preces e chamados de escritores, poetas, músicos, pintores e até engenheiros, e forneceriam a centelha criativa, aquela ideia genial que iria culminar a obra prima.

Originalmente eram 9 as musas da criatividade: Calíope (poemas épicos), Clio (história), Erato (poemas de amor), Euterpe (música), Melpômene (tragédia), Polímnia (hinos sagrados), Terpsícore (dança), Talia (comédia) e Urânia (astronomia e astrologia). O único jeito de ter uma carreira criativa de sucesso era adorando essas musas e mandando-lhes presentes e oferendas. Inclusive a palavra museu, como lugar para exibir coleções de obras de arte, vem das musas.

Mas relacionar a criatividade com algo divino não é exclusividade dos gregos; mesmo as religiões cristãs creditam a Deus as habilidades criativas, já que Ele é a fonte de toda a criatividade do universo.Há inúmeras obras que confirmam essa relação, como a Divina Comédia, de Dante Alighieri. 

INEDITISMO E UTILIDADE

Hoje em dia, com diversos estudos sobre o tema, a gente não precisa mais esperar pela boa vontade das musas ou pela inspiração divina; há métodos bem conhecidos e testados para gerar ideias.

Apesar de tanto estudo, o conceito de criatividade continua indefinido — mas um pequeno consenso existe: para ser considerada criativa, uma ideia precisa ser inédita e útil

O autor cita a pesquisadora Teresa Amabile, professora da Harvard Business School, que afirma serem 4 os fatores que afetam a criatividade:

1. Expertise 

    São os conhecimentos, as habilidades técnicas e talentos específicos em um dado domínio. Assim, não tem como alguém escrever uma sinfonia sem ter os conhecimentos necessários sobre música. Isso exige tempo, muito estudo e dedicação.

    2. Processos criativamente relevantes

    São os métodos que as pessoas usam para resolver problemas e criar soluções. Essas habilidades dependem bastante da personalidade — e do quanto a pessoa está disposta a se expor a riscos. Mas isso não significa que essas habilidades não possam ser aprendidas.

    3. Motivação

    É a vontade de se engajar em uma tarefa, ou, em outras palavras, paixão. Apesar da expertise e o pensamento criativo serem poderosas armas para gerar ideias, se não houver vontade, a coisa simplesmente não rola.

    4. Ambiente social

    Esse é o único componente externo ao indivíduo e tem mais influência do que a gente percebe. Se a empresa critica ideias arriscadas, se o status quo é mais importante que a melhoria contínua, dificilmente podemos descrever o lugar como uma usina de ideias.

    Apesar desse modelo claro, elegante e bem desenhado, ainda há muito da mitologia original, onde as pessoas acreditam na centelha divina, nos indivíduos mais criativos que outros por nascimento. 

    Enfim, a proposta é identificar os mitos que cercam a criatividade e redesenhá-los. Em vez das 9 musas, temos 10 mitos aqui para serem estudados e ressignificados.

    Então, vamos a eles.

    1. O MITO EUREKA

    O autor diz que, apesar de hoje em dia o povo não fala mais que as musas da inspiração trouxeram suas ideias, como na Grécia Antiga, a narrativa não mudou tanto assim. Essas histórias foram substituídas por relatos de epifanias, o momento mágico da eureca, aquele momento que o herói meio que recebe uma mensagem instantânea com a solução do problema que estava procurando.

    Esses conceitos tendem a posicionar a ideia, não a pessoa, como centro da narrativa. É ela que muda tudo, instantaneamente!

    É só lembrar da maçã caindo na cabeça de Newton que deu origem ao conceito da gravidade. E temos também o banho de Arquimedes, que, inclusive, deu origem à palavra eureca.

    O primo do Arquimedes, Rei Hiero, deu a ele um desafio especial. Ele tinha recebido uma coroa de ouro puro, mas não tinha certeza se o objeto dourado era mesmo feito desse material. Arquimedes não podia destruir a coroa e derreter o ouro para analisá-lo. 

    Ele ficou pensando muito e, cansado, resolveu tomar um banho de banheira. Foi quando ele percebeu que quando ele entrou, o nível da água subiu. Na hora, ele encontrou a solução para o problema da coroa; era só calcular a densidade do ouro, mergulhar a coroa em água e ver se o deslocamento da água era proporcional. O homem ficou tão empolgado que saiu da banheira e correu pela rua, pelado mesmo, gritando “Eureka!” (que em grego, significa: “Achei!”).

    O que essas duas histórias desconsideram é que tanto Newton como Arquimedes já vinham trabalhando arduamente nos temas muito antes da “revelação”. Nos dois casos, eles estavam relaxados; era só uma questão de organizar as ideias que já estavam na cabeça. Não veio nenhuma ideia “de fora” para solucionar o problema. 

    No livro “De onde vêm as boas ideias”, de Steven Johnson, ele chama esse fenômeno de intuição lenta. Clique aqui para ler a resenha.

    2. O MITO DA RAÇA

    Se as ideias vinham das musas para um grupo especial de pessoas, por que não assumir que essas pessoas pertencem a um tipo diferente de raça? Como se tivessem algo diferente no DNA, que as fizessem ter os superpoderes criativos.

    Isso faz com que algumas pessoas acreditem simplesmente que não são criativos, ao contrário de outras, que já nasceram assim.

    Mesmo hoje, no mercado de trabalho, há um grupo selecionado como sendo “os criativos” (publicitários, designers, artistas, redatores, etc) e os “não criativos” (o resto da população em geral, que faz os trabalhos chatos). Também já escrevi sobre isso nesse texto.

    O fato é que a capacidade criativa não é uma loteria genética; ela pode ser desenvolvida. E o ambiente adequado também ajuda muito.

    3. O MITO DA ORIGINALIDADE

    Aqui o autor explica que as coisas não surgem do nada, como se o gênio criativo tivesse tido uma epifania. A pessoa criativa sempre terá que se apoiar nos que vieram antes.

    Não há originalidade real; apenas caminhos sendo traçados e melhorados, às vezes em passos largos, às vezes, pequenos.

    Ele cita a famosa frase de Newton, que disse “Se eu pude ver longe, é porque estava sentado nos ombros de gigantes”, que eram os matemáticos, físicos e filósofos que vieram antes dele. 

    Burkus diz que nem mesmo essa frase é original… Bernard of Chartres, autor dessa citação publicada muitos anos antes, diz: “Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes; assim podemos ver mais que eles”. 

    Num ambiente limitado, como é o planeta Terra, ainda pode existir a possibilidade de mais de uma pessoa ter tido a mesma ideia com diferenças de tempo muito pequenas. A tecnologia está cheia de exemplos assim, e ele conta algumas histórias interessantes.

    4. O MITO DO EXPERT

    Esse mito parte do princípio de que só um profundo conhecedor do problema pode ser capaz de resolvê-lo. Em alguns casos, essa afirmação é verdade mesmo — não tem como resolver um problema complexo de física ou matemática sem conhecer muito bem os princípios, funções e ferramentas disponíveis.

    Não dá para pegar um leigo e pedir para ele operar um cérebro que está com problemas neurológicos. O problema é desdobrar esse raciocínio como se ele fosse uma regra geral para todos os problemas.

    A questão é que os experts conhecem tanto sobre o tema que acabam construindo suposições sobre o que é ou não possível — e trazendo restrições que nem sempre são verdadeiras.

    Às vezes é preciso convidar para o time alguém que não tenha conhecimentos específicos e não conheça as limitações orçamentárias, tecnológicas ou de outros tipos. Essa pessoa seria como uma lufada de ar fresco nas ideias — ela pode pensar em soluções que, depois, amadurecidas, podem ser viáveis. Estagiários em uma empresa podem ser uma boa fonte de ideais criativas; o ideal é misturar as competências.

    5. O MITO DO INCENTIVO

    Esse mito parte do princípio de que a qualidade da criatividade é proporcional aos incentivos (principalmente os financeiros).

    Mas o autor apresenta estudos dirigidos pela famosa especialista em criatividade, Teresa Amabile (ela de novo!), onde a moça diz que a motivação é uma das maiores influências da expressão criativa.

    Essa motivação pode ser externa (com incentivos, prêmios, etc) ou interna (alguma coisa dentro da pessoa a move para realizar a tarefa). Um estudo conduzido pela equipe da pesquisadora concluiu que, entre artistas, as peças feitas por encomenda ou destinadas à venda eram muito menos criativas do que as criadas pelo próprio prazer do artista. Não é difícil de entender, né?

    Para vender você não pode ser muito ousado; tem que atender às expectativas alheias — numa encomenda, as restrições do cliente são claras. Quando isso acontece, o processo criativo foca muito mais no dinheiro e na recompensa, do que no processo propriamente dito. Em alguns casos, a recompensa em dinheiro chega a travar o processo criativo.

    Mas isso não quer dizer que as recompensas não são necessárias; elas são, e muito! Mas o equilíbrio é tênue. 

    Esses incentivos precisam ser usados como uma forma de reconhecimento da qualidade criativa — e isso acaba funcionando como um incentivo interno também.

    6. O MITO DO CRIADOR SOLITÁRIO

    Esse é um dos mitos que eu mais odeio pessoalmente, inclusive porque aparecem frequentemente em livros de ficção; sempre tem um gênio (do bem ou do mal) que constrói estruturas impressionantemente complexas completamente sozinho, muitas vezes até em segredo.

    Mesmo nas empresas e nos trabalhos complexos, que exigem times multitalentosos e multidisciplinares, é comum que toda a criação seja creditada a apenas uma pessoa: Steve Jobs, só para ficar num exemplo comum. 

    O autor conta uma parte não muito divulgada da história da lâmpada elétrica, cuja invenção foi creditava a Thomas Edison, ignorando convenientemente a informação que, antes de Edison, já havia 22 pessoas compiladas em uma lista levantada pelos historiadores, como já tendo “inventado” a lâmpada antes mesmo dele ter preenchido o formulário da patente.

    Patente aliás que foi recusada porque era muito parecida com a que já havia sido registrada por John Starr, anos antes. Edison fez modificações no projeto e o patenteou como “Melhorias na lâmpada elétrica”. 

    O autor inclusive cita que a melhor invenção de Edison foi Menlo Park, um complexo de pesquisa e desenvolvimento onde ele trabalhava com times de engenheiros, físicos, químicos e mecânicos para testar suas ideias e as de outrem. Mas o gênio solitário vende muito mais e faz bem para o ego desses senhores, não é, Elon Musk?

    Basicamente toda a ciência funciona com base nesse mito; dezenas, centenas e até milhares de pesquisadores colaboram para apenas um ganhar o prêmio Nobel, por exemplo. Difícil superar isso.

    7. O MITO DO BRAINSTORMING        

    A maioria das empresas usa a velha e batida fórmula do brainstorming quando precisa de muitas ideias: reúne um grupo de pessoas numa sala com um quadro branco e canetas marcadoras, ou então vários blocos de post-is coloridos e pede que tudo seja preenchido — quanto mais, melhor!

    Não tem nada de essencialmente errado com o conceito — gerar o máximo possível de ideias é uma coisa boa. O problema é a maneira como isso é feito.

    O autor conta que o pesquisador Keith Sawyer estudou muito a respeito e encontrou um meio mais eficiente de gerar ideias. Como conclusão, ele desenvolveu um método com 8 passos:

    1. Encontre e defina o problema 
    2. Reúna conhecimento relevante sobre o tema
    3. Reúna informação potencialmente relacionada
    4. Reserve um tempo para incubação
    5. Gere uma larga variedade de ideias
    6. Combine as ideias de uma forma inesperada
    7. Selecione as melhores ideias
    8. Apresente a ideia

    Para o pesquisador, o brainstorming é parte do estágio 5 e ele não faz muito sentido se aplicado isoladamente, sem contexto. 

    Na verdade, a questão de gerar ideias em grupo já foi questionada e muito bem analisada no livro “Inside the Box: a proven system of creativity for breakthrough results”, de Drew Boyd e Jacob Goldenberg (resenha aqui). Eu até achei que o autor iria por esse lado, mas não foi. Então acredito que ajude ler esse outro livro também, para ter uma ideia mais ampla da questão.

    8. O MITO DA COESÃO

    Esse mito vem daquela ideia que o time criativo da empresa trabalha e se diverte junto — que quando colocadas num ambiente acolhedor e descontraído, as pessoas criam como se estivessem brincando. E se acredita que esse time, enquanto está unido, suspende o criticismo e foca no consenso.

    Sim, uma piscina de bolinhas, um terraço com vista, pufes e sofás confortáveis, bares estilosos — tudo ajuda. Mas isso não elimina (ainda bem) uma parte muito importante no processo criativo: o conflito.

    Se todos estão em harmonia e pensam igual, o que se pode criar de novo? Pessoas precisam questionar o status quo, a maneira como as coisas são feitas dentro da empresa, precisam ter pontos de vista diferentes dos colegas. Senão, é só brincadeira mesmo.

    No livro “Sprint: How to Solve Big Problems and Test New Ideas in Just Five Days”, de Jake Knapp (resenha aqui), o autor defende que, em qualquer grupo criativo, participe pelo menos uma pessoa que traria problemas se não fosse convidada (aquele tipo que vive arrumando confusão). Ela é importante porque traz pontos de vista incômodos e diferentes.

    9. O MITO DAS RESTRIÇÕES

    Esse é o mito que prega que uma equipe criativa não pode ter restrições — a liberdade deve ser ampla, total e irrestrita. Muitos times, inclusive, acreditam que sejam menos criativos por falta de recursos.

    Mas a Dra. Margaret Boden, pesquisadora em Inteligência Artificial e criatividade, afirma que “as restrições, ao contrário de se opor à criatividade, fazem a criatividade possível”. Eu mesma já tinha discutido isso aqui há quase 20 anos (veja esse texto).

    10. O MITO DA RATOEIRA

    Esse mito segue o ditado popular que, se traduzido do inglês ao pé da letra, diz: “Se você construir a melhor ratoeira, o mundo virá até você”. 

    Confesso que nunca tinha ouvido falar nisso, mas acredito que o equivalente em português seja “plante um jardim florido, que as borboletas virão”. 

    Ou seja, algo como: se você tiver uma ideia extraordinária, todos a reconhecerão no primeiro momento e darão o apoio que você precisa. 

    Bom, sério — acho que o mundo já deu provas suficientes que o reconhecimento de grandes ideias nunca é automático, inclusive por causa dos adjacentes possíveis, de que fala Steven Johnson em seu clássico “De onde vêm as boas ideias“ (resenha aqui).  

    Então, não conte com isso. Não basta ter uma boa ideia; é preciso saber muito bem como vendê-la.

    CONCLUSÕES

    Eu achei o livro bem interessante como um inventário de mitos sobre criatividade, mas, sinceramente, se você os outros que citei ao longo do texto, esse não acrescenta muito. 

    O autor dá exemplos com um case bem completo sobre cada mito, geralmente de empresas americanas, como é tradicional nos livros de negócios, mas nada muito empolgante ou original. Um belo trabalho de pesquisa e uma boa ideia em compilar os mitos.

    Infelizmente não existe ainda tradução para o português, mas se você quiser adquirir seu exemplar em inglês na Amazon do Brasil, é só clicar nesse link

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    1 comentário

    1. […] Resenha do livro  “The myths of creativity: the truth about how innovative companies and people generate great ideas”, de David Burkus. O texto escrito está nesse link. […]

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