Desde que li “O gigante enterrado” e “Klara e o Sol”, não deixo de me impressionar com o talento de Kazuo Ishiguro. Não à toa ele ganhou um nobel de literatura. Então, não titubeei em levar para casa “Never let me go”(seria algo como “Nunca me deixe ir“, numa tradução literal) quando o encontrei num mercado de pulgas.
A história é bem triste, mas muito bem contada. Começa com a narradora, uma mulher de 31 anos, dizendo que está cansada de ser cuidadora e que no final do ano vai parar. Ela fala sobre doadores, mas não dá para entender muito bem o contexto.
Lembrando da sua infância, Kathy descreve suas primeiras lembranças do que parece ser um colégio interno. Como as famílias nunca são citadas, pensei num orfanato (o que faria algum sentido com a história dos doadores — talvez as pessoas que sustentassem a instituição?).
Suas primeiras lembranças são de 4 anos; depois ela vai crescendo ao lado de meninas e meninos de idades próximas. Os professores são chamados “guardiães”e o grupo mora numa propriedade grande, com bastante espaço. Eles são incentivados a produzir arte, estudar literatura e praticar esportes.
Kathy acaba ficando mais próxima de dois amigos: Thommy e Ruth, que vão acompanhá-la pela vida adulta.
A relação entre eles é complexa, principalmente com Ruth. Eles parecem não saber exatamente porque estão ali, e tentam sempre perceber significados escondidos nas frases e comportamentos dos guardiães.
Estamos na década de 80 e eles não têm quase nenhum contato com o mundo exterior, exceto por música, livros e revistas; nunca saem da instituição, chamada Hailsham, e conseguem seus objetos pessoais num curioso sistema de tokens, que eles obtêm “vendendo” os objetos de arte que produzem para seus colegas (pode ser poesia, música, escultura, pintura, qualquer coisa).
Aos poucos eles vão descobrindo algumas pistas; uma guardiã, certa vez, disse que não adiantava eles sonharem com profissões convencionais, pois eles eram diferentes.
Pouco a pouco, as coisas vão ficando mais claras e a gente finalmente descobre, lá pelo meio do livro, que todos na verdade são clones, criados para fornecer órgãos vitais para cidadãos ingleses. Eles crescem e se desenvolvem de maneira saudável, mas sem perspectiva de um futuro como seria comum à maioria das pessoas.
Quando fazem 16 anos, vão para uma fazenda onde passam cerca de 2 anos até que começam os treinamentos para ser cuidadores (finalmente a gente descobre do que se trata).
Os cuidadores cuidam dos colegas que doam órgãos. Enquanto você é cuidador, como a Kathy, você não precisa doar nada. Mas se você se cansar de passar a vida em hospitais e casas de recuperação como acompanhante, a alternativa é passar o resto da vida em hospitais como paciente mesmo. E esse resto é pouco mesmo — no máximo 4 doações (eu achava que só dava para doar um rim sem morrer — todos os outros órgãos, se retirados, seriam fatais).
Mas enfim, o sistema, criado na Inglaterra depois da segunda guerra, produz pessoas que são criadas para esse fim. Todos sabem da existência desse grupo, mas vive como se eles não existissem. Mais ou menos como a gente faz com gado, galinhas e porcos. A gente sabe que não é justo, mas nosso conforto, saúde e bem-estar vem antes (falo por mim).
Eu fiquei chocada com a passividade dos “estudantes”. Não sei se pela maneira como foram criados, nenhum parece se revoltar. Na verdade, eles são incrivelmente ingênuos e parecem estar conformados com seu destino.
Mais tarde, Kathy e Tommy descobrem que a realidade é muito pior; Hailsham foi criada com o objetivo de provar que esses clones são como pessoas normais, e têm alma. Por isso a insistência em fazê-los estudar e produzir arte, que é o que nos faz humanos e prova que temos alma e sentimentos.
Mas as outras “fazendas de produção de clones” são praticamente depósitos; os jovens sequer são tratados como seres humanos.
A história de Kathy e seus amigos, os sentimentos, as descobertas, a complexidade da situação, e até a própria conformidade com o sistema vão se desenrolando de maneira magistral.
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Não somente a história é genial, mas a narrativa é muito profunda. Faz a gente questionar (pelo menos eu), o que faria nessa situação. E na situação dos guardiães? E na situação das pessoas que se beneficiam dos doadores?
Também fiquei pensando se não é mais cruel ir pegando os pedaços de uma pessoa aos poucos, em vez de matá-la e pegar tudo de uma vez, sei lá. Tem várias histórias de ficção científica com o mesmo plot (eu me lembro de ter visto um filme há muitos anos chamado “A ilha”), mas nenhuma contada com tanta sensibilidade e delicadeza como esse livro do mestre Ishiguro.
Eu terminei esse livro muito triste, apesar do tema ser tratado com delicadeza e sensibilidade, mais centrado na relação entre os amigos do que a situação bizarra propriamente dita.
Mas, olha, mereceu os prêmios e elogios. Uma leitura necessária. recomendo muito.
Em português foi traduzido como “Não me abandone jamais” e está disponível aqui na Amazon do Brasil.
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Gente, depois que terminei a resenha e fui procurar a capa do livro para ilustrar o episódio, acabei encontrando uma entrevista com Ishiguro onde ele responde várias perguntas sobre o livro. E a pergunta mais instigante foi: por que os personagens não se rebelam em momento algum da história, por que parecem tão conformados?
Ishiguro diz que há várias histórias sobre clones onde eles se rebelam e acabaram virando filmes de ação. E não era sobre isso que ele queria escrever: era sobre relações, sentimentos, emoções. E mais: os personagens não se rebelam, porque na vida real, as pessoas também se conformam. Muitas vivem num trabalho ruim, num casamento péssimo, numa vida sem graça ou sentido, e, mesmo assim, tentam fazer o melhor que podem para se adaptar e sobreviver. Inclusive, essa é a principal mensagem do livro — todo mundo vai morrer um dia — esse é um fato que não dá para se rebelar. Então temos que tentar viver da melhor forma o tempo que a gente tem, que a gente nunca sabe quanto é.
Como discordar desse gênio da literatura? É isso mesmo.
[…] Resenha do livro “Never let me go” de Kazuo Ishiguro. O texto escrito está nesse link. […]