Kentukis

Comprei “Little Eyes” (tradução livre: “Pequenos Olhos”), de Samantha Schweblin, porque tinha visto muito boas referências e elogios ao livro. Inclusive ganhou o prêmio Guardian & Times Best Novel em 2020. 

Vamos à história: um novo produto lançado no mercado está mexendo com pessoas no mundo todo. É o que os fabricantes chamam de kentukis; bichinhos de pelúcia de vários formatos com uma câmera nos olhos e alguns recursos de mobilidade básicos (tipo rodinhas nos pés). 

O negócio funciona da seguinte maneira: você pode comprar o tal bichinho e ele vai ser como um pet dentro da sua casa. Segue você o dia inteiro, mas só faz ruídos correspondentes ao animal que ele representa (piados, grunhidos, coisas desse tipo). 

Ou você pode “morar” num bichinho. Nesse caso, você acessa a câmera do bichinho que está na casa de alguém e vê tudo o que acontece com o dono dele — tipo um Big Brother.

Achei a ideia tão bizarra, absurda e sem noção, que fiquei com vontade de parar de ler o livro ali. Mas continuei, né? Tantos prêmios e elogios… vamos lá!

A questão é que quem mais quer os bichinhos são crianças pequenas (que expõem a sua vida e a de todos que compartilham a casa a um completo estranho; o que poderia dar errado, não é mesmo?), inclusive o negócio é recomendado por psicólogos (essa ficou bem difícil de engolir).

Quando você compra um kentuki (objeto) ou decide “morar” em um, a conexão é feita aleatoriamente e sem nenhuma garantia. Se acabar a bateria do robozinho porque alguém esqueceu de alimentá-lo ou você desconectar o bicho do seu computador, nunca mais é possível restabelecer essa conexão.

Então o negócio é feito randomicamente e depende de sorte: você compra um coelhinho e coloca na sua casa sem ter a menor ideia de quem está do outro lado. Pode ser uma viúva entediada ou um bandido perigoso. Por outro lado, se você escolhe ficar do lado do computador, pode ser que você vá “morar” no corpo de um dragão de um garotinho no Japão ou numa gralha que está num asilo de idosos. Não há garantia de nada. Se cada parte estiver num fuso horário diferente, a interação fica ainda mais reduzida. Ah, e o equipamento traduz simultaneamente a fala se o kentuki estiver em um local de idioma diferente do seu “morador”. 

É claro que alguém vai achar aí uma oportunidade de negócio, comparar várias conexões e vender para interessados com uma pré-seleção para os potenciais clientes. Por exemplo: quero me conectar com uma jovem estudante na Finlândia — alguém vai comprar vários tablets até chegar num kentuki que esteja nessa situação e vender a um preço bem alto por causa dessa “peneirada” antes.

As pessoas que estão atrás das câmeras (num computador ou tablet) não sabem nem mesmo que animal elas estão habitando, o que dá uma certa graça ao jogo. Então ficam procurando espelhos pela casa, indícios do país ou cidade onde estão, e até mesmo o perfil dos moradores; isso pode levar semanas ou até meses. Tem que ter muito tempo sobrando.

Aí o livro todo é uma colcha de retalhos de histórias de pessoas aleatórias, que tanto podem estar acompanhando a vida de um desconhecido pela câmera do kentuki como pode ter o próprio bicho dentro de casa. O formato é absolutamente igual a um outro livro que resenhei aqui (Unser zweites Leben), onde o autor também combina histórias de pessoas que vivem uma vida paralela naquele joguinho antigo chamado Second Life, em que a pessoa tem um avatar e vive num mundo virtual. A diferença aqui é que o avatar é físico em forma de um bicho de pelúcia e vive no mundo real.

Não precisa de muita criatividade para fazer alguém testemunhar crimes, receber ameaças, perder o controle emocional, viciar-se nessa vida paralela ou mesmo fazer amizade com alguém de outro país. As possibilidades são infinitas.

Olha, não é um livro ruim, mas pessoalmente não amei. É tipo um episódio do Black Mirror bem mediano. O texto é bem escrito, mas o argumento é tão inverossímil que tive dificuldades de entrar na brincadeira, o que pode ter afetado a experiência. Além, é claro, de ter lido um outro livro em formato muito parecido.

Depois fui descobrir que a autora é argentina e vive em Berlim; é ganhadora de vários prêmios literários (ela realmente escreve bem; talvez minha implicância tenha sido com a história).

Já tem a versão dele em português (chama-se “Kentukis”) e você pode comprar o seu na Amazon no Brasil usando esse link.

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