Glamour datado

É sempre assim; em festas ou reuniões, alguém me apresenta como engenheira e algumas pessoas do grupo logo murmuram “nossa, ela deve ser muito inteligente“. Já aconteceu na sala de aula de um MBA, onde fiz uma breve apresentação de meu currículo e uma estudante murmurar “nossa, estou me sentindo tão burra…“.

Pois é, fui conversar com a “burra” na hora do intervalo e saí de lá me achando um fóssil de lesma com QI reduzido. É que, papo vai, papo vem, a tal aluna me contou que havia se casado com um libanês, foi morar no Líbano e, pasmem, aprendeu árabe SOZINHA lendo jornal!!! Só para vocês se orientarem para o tamanho do feito, árabe é aquela língua que, escrita, parece um mar revolto com ondinhas rebeldes; de vez em quando saltam alguns pinguinhos. Pois essa moça foi trabalhar com a sogra na loja e aprendeu a ler, falar e escrever isso, depois de adulta, e sozinha! Não é espanhol, italiano, inglês ou alemão: é árabe! Se ela não é um gênio, não sei mais o que pode ser…

Essa distorção do conceito de inteligência acontece, infelizmente, com bastante frequência, porque os séculos XIX e XX, impulsionados pela revolução industrial, trataram de supervalorizar o lado esquerdo do cérebro (lado racional, lógico, sequencial, analista; o dos números) em detrimento do lado direito (o lado emocional, simbólico, simultâneo, sintético; o das artes). Inteligente era quem não tinha medo dos números e símbolos matemáticos e brilhante era quem ficava perfeitamente à vontade com eles. Genial era quem os tornava seus escravos.

Peça para qualquer um na rua descrever alguém inteligente. Ela vai dizer que a pessoa mexe com números. Ou que entende de física. Ou sabe programar computadores. Ninguém se lembra da complexidade que é escrever um bom romance, decorar e interpretar uma peça de teatro, reconstruir um nariz, desenhar histórias em quadrinhos ou costurar uma roupa cheia de recortes.

Sinto um constrangimento muito grande quando estou cercada de pessoas interessantíssimas e competentes, que às vezes dominam várias línguas e alguém me chama de inteligente só porque sou engenheira. Não vou enganar ninguém; é claro que faz muito bem para o ego. O problema é que fico me achando uma fraude. Incomoda, principalmente se você estiver ao lado de uma jornalista daquelas que sabe fazer esculturas com palavras ou um músico que usa as notas musicais para hipnotizar.

A boa notícia é que trocamos de século faz pouco tempo, e, aos poucos, as coisas estão mudando. Associar automaticamente genialidade com matemática está saindo de moda; as pessoas estão descobrindo que, para ser realmente brilhante, é preciso desenvolver os dois lados de maneira equilibrada e muito acima da média. Aquele estereótipo de nerd distraído está ficando datado, muito século XX.

Vai chegar o dia em que, para considerar alguém muito inteligente, será preciso bem mais que uma apresentação apressada ou uma olhada no seu currículo. Será preciso talento. Aí teremos inaugurado o século XXI.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

3 Responses

  1. 7 junho 2011 at 10:07 pm

    Não tinha lido esse.. perfeito!

  2. 19 setembro 2011 at 3:48 pm

    Boa tarde Lígia,

    Concordo com você: faz tempo que a supervalorização social das matemáticas me incomoda. Inteligencia é muito mais do que isso.

    Apenas um (contra) exemplo: visitei uma exposição de obras de artes feitas por deficientes mentais. Algumas delas mostravam uma visão do mundo radicalmente diferente… e muito interessante.

  3. 24 janeiro 2012 at 3:14 pm

    tá Lígia, procede mas… como tem gente burra se formando em faculdades de Design… e o pior não é isso: é que um bonde de pessoas iteressadas no crescimento exagerado desse “mercado acadêmico” do Design e das profissões ligadas a sensibilidade artística ficou espalhando na última década que para ser Designer (músico, cineasta, escritor, decorador, estilista, ator, diretor, fotógrafo…) não precisava ter nem um tiquinho de talento, BASTAVA fAZER UMA FACULDADE. conclusão: além de um monte de gente burra as faculdades ainda cospem milhares de pessoas sem talento.

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