Esse livro me foi recomendado em tantos lugares diferentes que não podia deixá-lo de fora. Então chegou a vez de “Ruined by Design: how designers destroyed the world, and what we can do to fix it” (tradução livre: “Arruinado pelo design: como os designers destruíram o mundo, e o que podemos fazer para consertar isso“, de Mike Monteiro.
A capa já é dramática: uma bomba atômica explodindo sob um filtro vermelho e, na frente, uma chamada para que os trabalhadores da Amazon se reúnam em um sindicato para lutar por condições de trabalho decentes. Mais panfletário, impossível. Mais necessário, impossível também.
Esse é um livro sobre ética no trabalho — a obra deveria ser obrigatória em todas os cursos, não apenas de design, mas todos os relacionados com negócios e tecnologia.
Já gostei porque o moço começa falando na introdução que, enquanto a gente lê esse livro, a Groelândia está derretendo, alguém está morrendo nos EUA numa briga armada, algum país idiota está lançando uma bomba sobre outro país idiota, o Facebook está “acidentalmente” vazando dados privados de seus usuários e há certamente um lobista do Silicon Valley no congresso americano tentando tornar ser mulher algo ilegal (essa última foi sensacional!).
É um jeito bem pessimista de começar um livro, mas com esse título e essa capa, ninguém pode dizer que foi enganado.
Mike tem uma redação enfática e apaixonada (se ele fosse mulher, diriam que é histérica e mal comida). Mas ele está aproveitando seus privilégios de homem para falar umas verdades, o que é ótimo.
A primeira parte conta como o mundo parece estar um caos, mas, na verdade, não está. As coisas estão funcionando exatamente do jeito que elas foram projetadas e desenhadas para ser: ter o engajamento como a métrica mais importante de todas (mais importante que segurança, que justiça, e até mais importante que vidas), o lucro como medida de sucesso, independente de como está sendo obtido (e a que preço).
E, segundo o autor, boa parte da responsabilidade é dos designers, que tornaram isso possível, pois são os profissionais que projetam esses artefatos para funcionarem dessa maneira; aqui ele se refere principalmente a produtos digitais.
Mike diz (e eu concordo), que nós somos responsáveis pelas coisas que colocamos no mundo. E também pelo efeito que essas coisas têm sobre o mundo. Ele cita Victor Papanek, um importante teórico do design, que diz: “Existem profissões mais nocivas que o design; mas são poucas”.
Então, o livro é um chamado para mudar o estado das coisas. Que os designers comecem a agir.
SOBRE MUDAR O MUNDO
Adoro as pauladas que ele dá: designers não são especiais e não têm talentos únicos. Não há nada que faça de um designer um profissional diferente dos outros. Mesmo que você seja a pessoa mais criativa e talentosa que você conhece, existem pelo menos 10 milhões de outras pessoas igualmente ótimas. Exatamente como você.
E agora vem a melhor parte: o mundo não é mudado por pessoas especiais; ele é mudado por pessoas comuns que estão tentando seguir a vida quando algum estúpido se coloca para atrapalhar o caminho. Então assumem a responsabilidade, enfrentam a estupidez, e mudam.
Sim, os magnatas do Vale do Silício dizem que querem mudar o mundo. Mas querem apenas ajustá-lo para que ele dê mais lucro para seus negócios; apenas isso. O que é bom para o mundo, provavelmente não é bom para o Facebook. Então, dane-se o mundo.
Ou você realmente acredita que alguém que ache ok espalhar fake news queira que o mundo melhore? Zuckerberg e seus parceiros de filosofia apenas sabe que quanto mais polêmico o conteúdo, mais engajamento gera e mais dinheiro entra na roda. Se vai prejudicar alguém (e vai), já não é problema dele.
Mike acredita (e eu assino embaixo) que todo ser humano tem a obrigação de se esforçar durante a estada nesse planeta para deixá-lo melhor do que o encontrou. E designers não são exceção.
Não adianta projetar um aplicativo belíssimo e com uma interface perfeita e intuitiva, se ela faz mal para o mundo e às pessoas. Design não é para ser apreciado; é para ser usado e resolver problemas.
Para Mike, duas habilidades essenciais deviam ser aprendidas durante a formação profissional (e que infelizmente não são): aprender a dizer NÃO e a perguntar POR QUÊ?
O mundo seria muito diferente (para melhor) se os designers se esmerassem para ser bons nessas habilidades.
MOVENDO-SE RÁPIDO E QUEBRANDO TUDO
Sabe aquele mantra das startups de errar rápido para aprender como fazer melhor? Pois é; as coisas acontecem rápido de acordo com a vontade dos investidores.
Ele cita o exemplo de um supremacista branco que entrou atirando em duas mesquitas na Nova Zelândia em 2019 e matou 50 pessoas. As plataformas fizeram exatamente o que foram projetadas para fazer: espalharam a notícia da maneira mais sensacionalista possível e aumentando exponencialmente o engajamento, tornando o assassino famoso.
Somente o Facebook removeu o vídeo 1,5 milhões de vezes em apenas 24 horas. Tentaram impedir o sistema fazer o que ele foi feito para fazer; depois acabaram jogando a toalha. O mesmo Facebook que fez um experimento para testar a saúde mental das pessoas sem o conhecimento (e consentimento) delas; eles usaram 600 mil seres humanos como cobaias inundando o feed deles com notícias negativas para ver o efeito. O que poderia dar errado, não é mesmo?
Em 2018, Mark Zuckerberg foi intimado a ir ao Congresso americano explicar o vazamento de dados de 87 milhões de usuários. Quando perguntado “O senhor tem a intenção de mudar o seu modelo de negócios para proteger a privacidade dos usuários?”, ele respondeu: “Não sei o que isso significa”. E ele não sabe mesmo.
Designers passam toda a carreira aprendendo como trabalhar de maneira rápida, mais rápida e mais rápida. Todo mundo quer ser o mais rápido e o maior; de preferência também o melhor na sua categoria. A meta é destruir os competidores até que eles se explodam. Depois comprar os pedaços que sobraram.
Como diz Mike, quanto mais rápido a gente se move, maior a probabilidade de quebrar coisas pelo caminho. Se uma empresa tem 2 bilhões de usuários e faz um teste que prejudica apenas 1%, isso não é nada. Exceto pelo fato de que são 20 milhões de seres humanos afetados. Pense.
Mas o autor cita uma frase do escritor Upton Sinclair que diz: “É difícil fazer um homem entender algo quando o seu salário depende dele não entender esse algo”. E, sim, chegamos na parte crítica. Todos precisamos de dinheiro para viver.
A QUESTÃO DOS INVESTIDORES
Investidores são pessoas que já têm muito dinheiro e querem mais, muito mais. Empresas que estão começando precisam desse dinheiro, então, o casamento acontece.
Só que, pense: geralmente, uma empresa é fundada para resolver algum problema do usuário (estamos falando principalmente em produtos digitais). Só que a partir do momento que o investidor entra na dança, a prioridade passa a ser ele, e não o usuário. E, para as startups, esse investimento é como cocaína; você consegue a primeira rodada, cresce um pouco e precisa de mais dinheiro para crescer; é uma bola de neve.
Ele deu o exemplo do Uber, que começou para resolver um problema em duas pontas: quem precisava de transporte rápido e barato e quem tinha um carro na garagem, algum tempo e precisava ganhar dinheiro. O conceito é maravilhoso e no começo, como qualquer lua de mel, foram só sorrisos, beijos e felicidades.
A partir do momento em que os investimentos começaram a colocar mais dinheiro, a cobrança dos resultados ficou mais dura. Chegou num ponto onde a empresa explodiu e tinha que contratar 500 engenheiros por semana, 300 designers por mês, arrumar mais 5000 motoristas por dia. Sendo uma empresa tocada por executivos inexperientes e deslumbrados.
Eu nunca me conformei com esse conceito de crescimento exponencial, tão incensado pelos consultores. Gente, crescimento exponencial é sinônimo de explosão. Não tem como controlar e evitar estragos. Qual o problema de crescer organicamente? Eu respondo: ganância.
O resultado é bem previsível: a qualidade do serviço despenca, não tem mais espaço para “nãos” e “por quês?”, e todas as pessoas envolvidas, sejam trabalhadores ou usuários, viram números.
Nessa equação, o delicado balanço entre motoristas, clientes e o Uber foi completamente destruído. E quem ganhou no final? Os investidores, apenas eles. Que vão usar os astronômicos lucros para investir na próxima ideia original e destruir tudo de novo.
Aqui ninguém está fazendo apologia à pobreza; todo mundo quer e merece ganhar dinheiro. A questão é como fazer isso tendo escrúpulos e não passando por cima de tudo o que estiver no caminho, incluindo pagar campanhas para difamar todos os que denunciam o modelo, como já é de praxe.
Mas um dos problemas é que as escolas de design nunca falam sobre ética no trabalho; aliás, os designers sequer precisam fazer um juramento quando se formam, como os médicos, por exemplo.
As escolas trabalham para fazer seus alunos se sentirem criativos e talentosos. Mas design não é sobre se expressar. design não é sobre seguir seus sonhos. Design não é sobre ser criativo. Design é sobre evitar que pessoas façam coisas horríveis umas às outras. Design é sobre dizer “não” e perguntar “por quê?”.
Mike conta mais um monte de histórias escabrosas sobre as Big Tech que são de conhecimento geral, explicadas de maneira bem crua, como o caso da Volkswagen, que mudou o software para passar nos testes de emissão de carbono de maneira criminosa (tanto que o engenheiro responsável foi preso, trazendo alguma esperança para o mundo), entre outros.
BELEZA, MAS O QUE PODEMOS FAZER?
Bom, o cara é experiente no mercado (está há mais de 30 anos), já deu vários cursos, aprendeu muito, mas reconhece seus privilégios de homem branco e também entende que as pessoas têm boletos para pagar.
Bom, primeiro ele começa essa parte contando que muita gente que trabalha nessas empresas tóxicas (tipo Amazon, Twitter, etc), sabem que estão fazendo coisas que não se orgulham, mas precisam pagar as contas. Então muitos fazem trabalhos voluntários nas horas vagas para compensar. Mas seria esse um caminho?
As pessoas trabalham para empresas que afetam negativamente bilhões de pessoas. Depois usam algumas horas para causa um impacto social em algumas centenas (talvez milhares). Melhor seria se usassem a maior parte do tempo para tentar reverter os estragos, né?
A questão é que as decisões importantes, que afetam bilhões de pessoas, acabam sendo tomadas por gente muito jovem, recém saída da escola. Pois os profissionais mais experientes que se deram conta do tamanho do estrago que estavam ajudando a fazer, tiveram burn outs e saíram para trabalhar em ONGs.
Mike advoga que isso não funciona; para mudar essas grandes empresas, a pessoa tem que lutar do lado de dentro. Se toda a equipe perguntar o porque das decisões serem essas e se negar a desenvolver coisas, há esperança de mudança. Ele acredita que as escolas precisam formar profissionais mais críticos e contestadores. Porque a essência desses serviços digitais não é ruim; a ganância é que estraga tudo. Serviços financeiros, redes sociais, indústria da saúde, educação: tudo está contaminado.
O problema é que esse espaço para a luta não existe em todas as grandes empresas. O Twitter (agora X), por exemplo, está fora de questão; virou uma plataforma de suporte para supremacistas brancos comandada pelo inescrupuloso Elon Musk.
Mas há outras que estão realmente tentando não ser tão destruidoras; é claro que lugar perfeito não existe — estamos falando do planeta Terra sendo dominado por humanos. Mas há sim, empresas com lideranças conscientes e pessoas sérias, onde você pode sentir que está fazendo o mundo melhor e ainda ganhando dinheiro (o que é perfeitamente possível e desejado). E provavelmente essas são mais sustentáveis e vão durar mais.
Porque a falácia que a estrada do sucesso é pavimentada por trabalho anti-ético e falta de escrúpulos, é isso, apenas uma falácia. Não é uma estrada, mas uma armadilha, um vale da morte com um despenhadeiro no final.
Tem uma parte que gostei muito onde ele fala do mito do gênio solitário que não passa mesmo de um mito. A capacidade de colaborar é o que muda o mundo.
Ele dá algumas dicas para se sentir mais confortável com o trabalho e uma delas é saber de onde vem o dinheiro que mantém a empresa. Se o dinheiro vem do engajamento, e não importa o conteúdo, preste atenção.
Mike também dá dicas para reconhecer as más práticas, como aquela taxa escondida que você só vê na finalização da compra, a dificuldade de cancelar um serviço, a linguagem manipulativa, o software viciante (já resenhei um livro aqui que fala disso, o Hooked, do Nyr Eyal), a coleta secreta de dados, “liberdade de expressão” para justificar racismo, machismo, homofobia e outros mais, as políticas de uso polêmicas, enfim, várias red flags que é preciso ficar atento.
Ele fala mais da questão ética, de como conseguir aliados para a causa, sobre as importância das organizações profissionais para dar suporte aos soldados nessa batalha.
CONCLUSÕES
Ele termina dizendo que a responsabilidade profissional também é política; e não importa o partido. É preciso ter consciência de fazer o que é preciso para proteger as pessoas que estão sendo impactadas pelo resultado do nosso trabalho. Ainda mais com o crescimento descontrolado das IAs generativas.
Gostei demais do livro e penso que seria importante que todos os estudantes e profissionais o lessem; não apenas os designers, mas os desenvolvedores, engenheiros, gestores, gerentes de projeto e todos os envolvidos no processo de colocar produtos no mundo.
Esse livro me lembrou muito da especialização em Futures Thinking, ou Futurismo, que fiz há alguns anos. Foi lá que eu me dei conta de que, se a gente não ficar atento e lúcido, pode estar ativamente ajudando a construir um futuro que a gente não deseja, por pura distração.
Já passou da hora de acordar.
Bom, infelizmente ainda não tem a versão em português, mas se você quiser ler no original em inglês, é só clicar nesse link para adquirir o seu na Amazon do Brasil.
1 Response