Range

Achei difícil traduzir o título “Range: How Generalists Triumph in a Specialized World”, de David Epstein. Aí fui olhar o título em português e vi que nem os tradutores profissionais conseguiram; deixaram só o subtítulo “Como generalistas triunfam num mundo especializado”. 

É que range é uma palavra que a gente também usa em português, apesar de não fazer parte do nosso idioma — e talvez seja justamente por causa da dificuldade de comunicar a ideia de maneira exata. Range quer dizer gama, amplitude, faixa de variedade, largura, extensão. Mas se colocasse quaisquer dessas palavras no título, ia ficar meio esquisito. Não é a mesma ideia. 

Bom, dito isso, a primeira vez que vi esse livro foi fazendo pesquisas de ideias de capa para o meu mais recente (Atitude Pró Inovação); a editora pediu referências (que foram ignoradas…rs) e essa foi uma das que eu selecionei na loja da Amazon.

Depois fui olhar melhor e vi que o assunto era altamente do meu interesse; na verdade, não podia deixar de ler esse livro. Apesar de dizer que sou uma pessoa especializada (fiz doutorado numa área específica; dá para dizer que isso é o máximo de especialização numa carreira), também não dá para negar que sou generalista, dada a variedade de assuntos pelos quais me interesso e estudo.

Então bora ver o que esse moço tem a falar sobre generalistas e especialistas.

DOIS EXEMPLOS

Ele começa mostrando o contraste entre dois atletas famosos e maiores em suas respectivas áreas: Tiger Woods (golfe) e Roger Federer (tênis). Tiger foi educado pelo pai para seguir esse esporte desde a mais tenra infância (o pai brincava de golfe com ele desde os três meses de idade e começou a jogar de verdade aos três anos).

Já Federer, experimentou esqui, basquete, handebol, futebol, tênis de mesa, natação, skate, futebol e muitos outros. E, para ele, sempre tinha mais graça quando havia uma bola envolvida. Só depois escolheu o tênis e, mesmo nesse esporte, só ganhou real destaque quando já estava na faixa dos 30 anos, quando muitos atletas já começam a se aposentar.

É claro que dois exemplos pontuais não são suficientes para determinar um padrão; então o autor começa a lançar mão de estudos mostrando que boa parte da elite dos esportes iniciou relativamente tarde na prática intensiva e especializada. 

Em 2014, um time de cientistas alemães publicou um estudo mostrou que os campeões da copa do mundo de futebol  eram amadores no esporte até a idade de 22 anos (ou mais). Antes disso, boa parte deles praticava outros esportes.

MAS NEM SÓ NO ESPORTE…

Saindo dos esportes, ele conta também a história de Duke Wellignton, o grande jazzista, que preferia desenhar e jogar basquete a ter aulas de música quando criança) e Maryam Mirzakhani, que sonhava em ser novelista e acabou virando a primeira mulher a ganhar a Medalha Fields, o “Nobel” de Matemática.

Esse trecho me lembrou muito do livro “Originais”, de Adam Grant, que mostrava todos os ganhadores do Nobel tendo hobbies completamente estranhos às suas áreas de atuação. 

A conclusão é que, quando a pessoa é extremamente especializada, a experiência só piora o seu desempenho, pois a tendência é o seu range ficar cada vez mais estreito e limitado. A pessoa acaba ficando autoconfiante demais e totalmente despreparada para imprevistos. Sabe aquela história de que “para quem só tem um martelo, tudo é prego”? É isso.

EXPERIÊNCIA NÃO É TUDO

O Nobel Daniel Kahneman chegou a liderar vários estudos que não conseguiram evidências de que a experiência eleva a habilidade em cenários reais (lembrando: jogos esportivos não são a vida real). 

Em competições esportivas, onde o ambiente é controlado e as regras sempre valem, quanto mais se treina, melhor é o desempenho. Em algumas profissões (por exemplo, um bombeiro que se prepara para emergências), também.

Na vida real, cheia de imprevistos, o efeito não aparece. Em design a gente chama de “wicked problems” ou problemas perversos/malvados.

Nos wicked problems, as regras geralmente são incompletas ou não estão claras. É difícil de reconhecer um padrão, onde se possa aprender (tipo “toda vez que acontece isso, resulta naquilo”); em geral os padrões não são óbvios ou os feedbacks são imprecisos ou às vezes aparecem tarde demais.

Mas e sobre humanos jogando xadrez contra computadores? Bom, todo mundo conhece a história do Deep Blue, o computador que ganhou de Kasparov, o maior jogador de xadrez da história. Pois tem um desdobramento que eu não conhecia: alguns anos depois, Kasparov começou a treinar equipes formadas por humanos e computadores. 

E não é que ele conseguiu fazer dois jogadores amadores em conjunto com três computadores normais ganhar do supercomputador Hydra, o maior super computador especializado em xadrez do mundo? Essas combinações são chamadas centauros e conseguem extrair o melhor de cada parte.

Jogadores de xadrez tradicionais, geralmente concentram-se em decorar estruturas de padrões que se repetem. Quando não precisam se preocupar com isso (os parceiros computadores o fazem muito melhor), podem se concentrar na estratégia. A maior contribuição de um ser humano para um time, não é o conhecimento especializado, mas a visão global, incluindo variáveis que não tinham sido percebidas antes.

O resumo da ideia cabe todo nessa frase (que eu adaptei, pois no original o autor usa o jogo Jeopardy!, que é um jogo de conhecimentos gerais, como essas gincanas que a gente vê na TV). Então:

A diferença entre ganhar um jogo de conhecimentos gerais e descobrir a cura do câncer é que as respostas para as perguntas do jogo são todas conhecidas. Na cura do câncer, ainda estamos ocupados em fazer as perguntas certas.

Inclusive, estudos mais recentes mostram que as tarefas que hoje em dia a gente tem no trabalho (com as tecnologias e o cenário mudando o tempo todo) faz com que a gente esteja mais bem preparados para a complexidade, que se manifesta numa flexibilidade maior para encontrar soluções não óbvias.

A gente já vem equipado de fábrica para aprender com a experiência, mas muitas vezes falhamos em aprender sem a experiência, que é o que mais tem na vida real. 

Então, a chave não é saber pouco ou nada. Mas, se a gente tem uma coleção de várias coisas iguais, a ideia é ter menos exemplares de cada tipo e mais variedade. 

POR UMA VISÃO EXTERNA

Outra coisa interessante que o autor fala é que quando a gente tem todos os dados para tomar uma decisão (tipo, conhece bem o negócio e suas variáveis), erra mais do que quando tem menos informações. Como pode?

Sim, há estudos mostrando que, quando a gente tem muitos detalhes, acaba perdendo a visão externa. Você conhece cada cano e rodapé da casa; mas não consegue enxergar o impacto que a fachada tem sobre a vizinhança.

Quando a gente tem muita informação sobre um processo, tende a achar que será um sucesso. Por exemplo: eu pergunto qual cavalo vai ganhar uma corrida. Quanto mais detalhes eu fornecer sobre um cavalo específico, maior a tendência de você achar que ele vai ganhar. A nossa visão do mundo fica enviesada porque há um desequilíbrio de informações.

MAIS HISTÓRIAS

Os capítulos vão enfileirando histórias de pessoas famosas por sua excelência no trabalho, como Van Gogh, que passaram boa parte da vida sem saber direito o que fazer, e só descobriram seu talento relativamente tarde na vida.

A ideia é mostrar para as pessoas que elas não estão atrasadas. Só porque não conquistou nada de memorável até agora, não significa que não venha a fazê-lo (mas fico aqui pensando; por que essa ideia de que para a vida valer a pena precisa fazer algo e ficar famoso? Só a amar e ser amado não deveria bastar?).

O FAZ TUDO

Tem uma expressão em inglês que se chama “Jack of all trades”, que é uma versão do latim “Johannes factotum”. Quer dizer, em bom português, o nosso “João faz tudo”. 

No século XVI, chamar alguém de “Jack of all trades” era um insulto, um demérito, porque a continuação da frase era “Jack of all trades, master of none”, ou “João faz de tudo, mas não é mestre em nada”. 

O autor oferece uma continuação mais contemporânea para esse dito: “João faz tudo, mestre em coisa nenhuma, mas muitas faz melhor do que o mestre em uma coisa só”*.

CONCLUSÃO

Olha, achei o livro interessante, principalmente por conta das muitas histórias de biografias que Epstein pesquisou. Mas a essência me lembrou muito “Originais”, do Adam Grant, que, na minha opinião, é mais bem escrito e estruturado.

No final das contas, a conclusão é a mesma: seja especialista em alguma coisa, mas saiba bastante também sobre outros assuntos.

Aparentemente, estou indo no caminho certo. Se é mais eficaz, não posso dizer. De minha parte, só posso garantir que é mais divertido.

Quer ler o livro? Tem em português, olha que coisa boa. É só clicar aqui para comprar na Amazon do Brasil.

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* “Jack of all trades, master of none, but oftentimes better than a master of one”.

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