Não fui eu quem falou

Vivo reclamando do alemão, essa língua de bárbaros, mas estou em companhia ilustríssima: ninguém menos do que o célebre Mark Twain. No final do século XIX, quando o famoso escritor e humorista americano andava pela Europa, resolveu morar um tempo na cidade de Heildelberg para aprender alemão. Da experiência nasceu um texto hilário, imperdível para quem quer aprender a língua ou gosta de curiosidades.

Mark Twain é famoso pelos clássicos “As aventuras de Tom Sawyer” e “As aventuras de Huckleberry Finn“, mas tenho também o “Dicas úteis para uma vida fútil” e adoro.

Na versão bilíngue alemão-inglês “Die schreckliche deutsche Sprache — The awful german language” (algo como “A horrorosa língua alemã“) ele descasca o idioma de Goethe.

Começa pelo básico, o absurdo dos gêneros dos substantivos, totalmente arbitrários mas imprescindíveis para qualquer frase simples que se queria construir (moça é neutro, parede é feminino e abóbora é masculino, vai entender por que, ainda mais para alguém que tem a língua inglesa como mãe). Esses dias conversei com uma amiga e ela me contou do drama que foi excluir a expressão Fraulein do uso cotidiano (há menos de 50 anos); seria o equivalente a senhorita, mas em alemão, as mulheres não casadas ficavam eternamente condenadas ao gênero neutro. Nem mulheres eram consideradas, pode?

Depois ele senta a lenha nas declinações, que parecem ter sido inventadas por puro sadismo, sem nenhuma utilidade prática a não ser causar pesadelos indescritíveis nos estrangeiros que sonham com nominativos, acusativos, dativos e genitivos querendo atacá-lo na calada da noite.

Sobre os verbos, o negócio fica muito engraçado porque existe um fenômeno no alemão que faz com que alguns deles sejam despedaçados em duas partes, sendo que uma fica no começo e outra no final da frase (no meio segue a história inteira, cheia de adjetivos e situações diversas). Como cada pedaço separado significa uma coisa diferente, você só entende o que a pessoa quer dizer depois que ela pronuncia a última sílaba. Twain escreve um texto em inglês usando essa regra que ficaria mais ou menos assim em português:

As malas estavam prontas e ele PAR depois de beijar sua mãe e suas irmãs, e uma vez mais pressionar seu peito contra o de sua adorada Gretchen, que, vestida com uma simples musseline branca, com uma única rosa nas ondas exuberantes do seu lindo cabelo castanho, cambaleou pelas escadas, ainda pálida de medo e excitação da noite passada, mas cheia de saudade, descansando sua pobre cabeça dolorida ainda mais uma vez sobre o peito de quem amava mais que a própria vida, TIU.

Vocês podem não acreditar, mas o pior é que é assim mesmo. Mark ainda reclama, entre outras coisas, sobre o comprimento das palavras. É que em alemão, a pessoa pode criar seus próprios vocábulos como se fosse receita culinária; cada um junta os ingredientes que achar mais adequados e você, pobre mortal, jamais vai conseguir encontrar o bolo no dicionário.

Além do mais, fica uma coisa tão gigantesca que Twain diz que aquilo não são palavras, mas procissões alfabéticas. Aliás, o sujeito define muito bem: em alemão as palavras são tão grandes que têm até perspectiva. Veja o caso, por exemplo, do nome que eles colocam na porta da câmara de vereadores: stadtverordnetenversammlungen.

Mark ainda reclama (com razão) do fato de alguns vocábulos terem dezenas de significados e funções diferentes. Custava criar outras específicas? Zug, por exemplo, pode significar tantas coisas com seus prefixos e sufixos que dá para escrever uma história inteira só com ela. Com Schlag é a mesma coisa.

Enfim, Mark Twain termina o livro com sugestões bem-humoradas para reformar a língua alemã. Começa eliminando os dativos, depois sugere colocar o verbo sempre no começo (e numa palavra só) e vai desfiando ideias, de reorganizar a definição dos gêneros respeitando a vontade do Criador até eliminar todo vocabulário, deixando apenas as palavras zug e schlag, com seus devidos prefixos e sufixos, que já dão conta de quase tudo.

Resumindo, Twain conclui, a partir de seus “exaustivos estudos filológicos“, que um estudante aplicado leva 30 horas para aprender inglês, 30 dias para aprender francês e 30 anos para aprender alemão.

Pode ser que seja o momento, mas gargalhei muito enquanto lia o livro.  Ri de desespero, mas ri! Hahahahahaha….

6 Responses

  1. 19 setembro 2011 at 6:51 pm

    Pelo que entendi é uma sacada para os interlocutores ficarem atendos um na fala do outro senão perdem o fio…hahaha

  2. Andre Bnu
    Responder
    21 setembro 2011 at 10:07 pm

    Alemao nao eh taaao dificil… 30 anos eh exagero… em uns 29 ja da falar um pouco, heheh…
    Boa sorte!

  3. Andre Bnu
    Responder
    21 setembro 2011 at 10:09 pm

    …ja dah PRA falar um pouco… entschuldigen Sie bitte…

  4. Rosana Conte
    Responder
    14 maio 2012 at 11:27 am

    Ótimo texto, Ligia. O pior é que sou obrigada a concordar com Mark Twain, pois quanto mais estudo este idioma, mais tenho a sensacao de que sei cada vez menos, pois a coisa só vai complicando. E agora me pergunto: será que este povo é assim complicado por causa da língua ou a língua é que é complicada por causa deles? Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?

    • ligiafascioni
      Responder
      14 maio 2012 at 1:33 pm

      É, Rosana, a gente sofre….eheheheh… cada vez que a gente acha que está começando a entender a coisa, o negócio complica mais ainda. Mas a gente chega lá…ehehehe

  5. Guilherme Cysne
    Responder
    19 abril 2016 at 11:36 am

    sabe onde posso encontrar esse ensaio? Livro ou PDF
    Agradeço 🙂

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