Minha mãe não acredita, mas adoro comer (mãe sempre acha que a gente está magrinho demais). Gosto tanto que paro quando não sinto mais o sabor (lá pela décima garfada), o que me faz sempre preferir bistrôs com vários pratos enfeitadinhos e caprichados a churrascarias rodízio e buffets livres.
Os economistas sociais já descobriram que a primeira mordida é sempre mais deliciosa que a última, pois nosso corpo (incluindo a língua) se acostuma e se adapta com muita facilidade; o que era sensacional no começo fica chato num instante.
Pois o genial chef catalão Ferran Adriá sabe muito bem disso. O moço simplesmente reinventou a gastronomia como nós a conhecemos. A biografia do mais festejado, polêmico, inventivo e ousado chef de cozinha dos últimos trocentos anos é uma aula de inovação para qualquer um que se interesse tanto por gastronomia como por inovação.
O livro “Ferran: the inside story of El Bulli and the man who reinvented food“, de Colman Andrews (um respeitado crítico de cozinha americano) começa contando a história do lendário restaurante El Bulli, instalado num lugar ermo, de difícil acesso, nos confins da Catalunha, e que mesmo assim conseguiu 3 estrelas da bíblia da gastronomia mundial, o guia Michelin. O restaurante, construído pelas mãos dos proprietários (os Schillings, um alemão e uma tcheca), nasceu como um bar de praia em 1962, e foi aos poucos se transformando num lugar respeitado graças aos investimentos e espírito inovador de seus idealizadores.
Para quem estuda inovação, é interessante notar a influência da liderança do Dr. Schilling no processo de amadurecimento do lugar. A Catalunha também aparece como um ambiente propício para a inovação culinária, dada à sua proximidade com a fronteira francesa e toda a cultura gastronômica resultante daí bem como a abundância e variedade de ingredientes locais.
Os chefs que passaram pelo lugar eram todos estrelados, mas os negócios nunca foram um sucesso financeiro. Quando Ferran chegou lá, aos 22 anos, já tinha passado por muitas experiências em restaurantes consagrados e o paladar já estava apuradíssimo. Em 1994, com o restaurante quase falindo, Ferran e o gerente do El Bulli, Juli Soler, compraram o lugar. Eles já usavam o período de inverno, quando o estabelecimento fechava, para fazer experimentos e criar novos pratos; mas a partir daí a atividade ficou mais intensa.
Ferran tem uma visão muito particular sobre o trabalho de um chef: “quando você cozinha, você cria uma conversação com quem vai comer. Com a cozinha de vanguarda, você cria uma nova linguagem de conversação. Para fazer isso, seu primeiro trabalho é criar um novo alfabeto. Então você faz as palavras, depois você cria as sentenças. Como cliente, você tem que ter boa vontade para tentar entender essa nova linguagem“. Ele sabe que nem todo mundo aprecia essas novidades, mas não se incomoda. “A cozinha de vanguarda é para uma minoria. Jazz também é para uma minoria e não há nada de errado com ele; é maravilhoso“.
Pois foi exatamente isso que o chef mais famoso do mundo fez: reinventou o alfabeto da comida. Ele começou inserindo ingredientes catalães, como frutos do mar e alguns temperos, na clássica cozinha francesa, que ele dominava como poucos. Depois, começou a pensar em como poderia isolar o sabor de um ingrediente até que ele ficasse completamente puro, num estado em que pudesse ser recombinado com outros sabores também puros. O moço, que na época ainda nem tinha 30 anos, usou técnicas menos usuais em cozinhas e mais frequentes em laboratórios, pois, além da caramelização, defumação e processos semelhantes, também começou a experimentar a liquefação, a emulsificação, o ultra-congelamento com nitrogênio líquido, a esferificação e a produção de espumas e aerados.
A exigência com ingredientes da melhor qualidade fez com que os sabores isolados pudessem ser experimentados em outras dimensões. Usando as palavras do chef: “não apenas um dos sentidos deve ser estimulado; o tato pode ser provocado (contrastes de temperaturas e texturas), o olfato e a visão (cores, formas, ilusões de ótica) e o sexto sentido (reações emocionais como memórias de sabores de infância)”.
O El Bulli costumava receber apenas clientes com reservas; na ocasião, havia uma breve entrevista para conhecer as preferências e restrições alimentares de cada um dos comensais. No dia do jantar, uma sequência de aproximadamente 30 pratos eram servidos; um menu especial era preparado para cada uma das pessoas presentes. Cada prato, inspirado nas tapas andaluzas, era uma experiência gastronômica única; porções pequenas, mas altamente elaboradas para surpreender e encantar. Também não havia hierarquia entre entrada, prato principal e sobremesa; depois de uma única framboesa grelhada flambada com gin e zimbro, podia vir um crepe de camarão cortado em folhas finíssimas e fritas com gergelim e pimenta fresca, seguido de um sorbet de saquê coberto com espuma de ostras e tônica. Enfim, não havia como ficar indiferente. Para o restaurante, era um trabalho hercúleo, pois, com lugar para cerca de 50 pessoas, eles precisavam preparar mais de 150 diferentes tipos de pratos a cada noite.
Claro que um jantar desses não é para matar a fome; é uma experiência gastronômica para estimular os sentidos e ajudar a refletir sobre os sabores e prazeres; Darwin já dizia que a gastronomia era a maior descoberta do homem depois da linguagem. O El Bulli está mais para uma mostra de arte conceitual do que para uma cantina italiana, mas tenho certeza de que eu sairia de lá feliz e satisfeita.
Adriá é um espírito inquieto; depois de tanto sucesso, fama, capas de revistas no mundo todo e ser referência para qualquer um que estude gastronomia (ou inovação), ele mantém até hoje uma oficina de experimentação com vários chefes explorando as diferentes possibilidades de se construir pratos que surpreendem o paladar, com texturas e formas impensadas (a esferificação é uma técnica que transforma o ingrediente em algo parecido com sagu; imagine um sagu de lagosta, com o sabor concentrado ao máximo).
Por causa dessas mirabolâncias e sem ter com quem comparar, um crítico chamou sua cozinha de molecular. Ora, todo o processo de preparação de comidas é molecular (ao assar, cozinhar, fritar, marinar, etc, as moléculas são realmente alteradas); Ferran, que não quer ser apenas uma moda, não gosta de rótulos e rejeita esse especialmente. Ele diz que sua cozinha é desconstrutivista, do tipo El Bulli e nada mais.
A capacidade de inovação do chef é algo a ser estudado com bastante afinco; há que se aprender muito tentando entender como a cabeça desse gênio funciona. Agitado, ele já passou meses no atelier do escultor catalão Xavier Medina-Campeny estudando arte e compartilhando processos criativos; sempre se pergunta por que não e testa suas ideias sem nenhuma restrição (deve ter estragado muita comida no processo).
O El Bulli fechou em 2010 (pena!) e Ferran comprou uma grande área na Costa Brava para construir uma fundação totalmente integrada à natureza que vai funcionar como um grande centro de estudos gastronômicos. Lá haverá laboratórios e locais para palestras, cursos, workshops e, espero eu, um restaurante-escola.
Ferran já deixou sua marca no mundo e a gastronomia, gostem seus críticos ou não, nunca mais foi a mesma depois do El Bulli. Aliás, uma curiosidade: Bulli era o apelido do cão bulldogue dos Schillings, fundadores do restaurante.
Pois é, depois disso tudo me deu uma baita fome. Mas é de alguma coisinha que ainda não sei o que é, sabe como, Sr. Adriá?
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