Nossa, preciso demais compartilhar esse achado incrível! Encontrei “The man who spoke snakish” (tradução livre: “O homem que falava serpentês — ou a língua das cobras”), do estoniano Andrus Kivirähk, num sebo maravilhoso em Kreuzberg chamado Another Country (dica do querido Ricardo Beggiato).
O autor é um jornalista, contista, escritor de livros infantis e foi premiado por essa obra na França. Gente, como pode uma pessoa ter tanta imaginação?
A história se passa na Estônia, num tempo indeterminado que mistura vilarejos da Idade Média com humanos ancestrais.
O protagonista, chamado Leemet, vive na floresta onde quase não dá para ver o céu, e vai contando a história de sua família.
Esse povo antiquíssimo falava a língua das cobras, que eram considerados os animais mais sábios e inteligentes, capazes de dominar todos os outros.
O humanos ficaram amigos das serpentes e aprenderam o idioma, o que facilitou muito a vida deles, pois, só para citar um exemplo, quando queriam comer um veado, era só pedir para que eles se sacrificarem usando as palavras certas. Os animais se entregavam ao abate e a tribo podia se alimentar sem o uso de violência. Os humanos eram animais como quaisquer outros; as cobras eram quem dominava tudo.
Mas eis que, perto da data do nascimento de Leemet, o pai ficou fascinado pela modernidade que se avizinhava. As pessoas estavam todas saindo da floresta e vivendo em vilas, plantando trigo, fazendo pão, produzindo vinho. A mãe era totalmente contra passar a maior parte do tempo sem a proteção das árvores, a céu aberto, o que ela considerava anti natural. Ela era totalmente avessa a essas revoluções e mudanças; detestava a vida na vila e não comia pão de jeito nenhum.
Já o pai era totalmente fascinado por esse novo mundo; logo aprendeu a usar a foice, plantar trigo e até a falar o idioma alemão. Trabalhava o dia todo no campo.
A mãe, entendiada e infeliz, passava o tempo passeando pela floresta que ficava ao redor da vila. Até que encontrou um urso. Ursos eram os animais mais próximos dos humanos em termos de inteligência e temperamento; inclusive eram famosos naquela época por seduzir mulheres humanas — eram grandes fofos, amigáveis, gentis, queridos, e quase não falavam.
Eis que um dia a mãe foi pega em flagrante pelo pai na cama com um ursão. O “procedimento” para aqueles casos era falar para o urso sumir dali na língua das serpentes, mas o pai tinha se esquecido do idioma por falta de uso e só conseguiu balbuciar alguns sons. Em estado de choque, o urso, que não esperava por isso, acabou cortando a cabeça do pai com um tapa, por puro desespero e surpresa. Apavorado com o feito, o animal se auto castrou e fugiu para a floresta, mortificado com o ato.
A mãe se sentiu muito culpada pela morte do marido e acabou pegando os dois filhos, Leemet e Salme, e voltando para as profundezas da floresta.
A história é cheia de acontecimentos interessantes num clima de fábula; lembrou-me muito o romance “O Gigante enterrado”, do Kazuo Ishiguro.
Leemet é muito inteligente e vive numa dobra do tempo onde o passado não existe mais e o futuro não lhe serve. Todos na floresta vão se mudando para o vilarejo, restando apenas poucas pessoas; ele é o único jovem fluente na língua das serpentes. Depois dele, os humanos não serão mais capazes de se comunicar com as cobras e os outros animais; o peso disso é imenso.
O feiticeiro da floresta serve-se da posição de autoridade para dar vazão às suas perversidades; usa todo o seu poder e conhecimento para torturar animais e pessoas. O velho decrépito e sociopata não tem limites. Invoca espíritos misteriosos e exige sacrifícios absurdos. O protagonista e sua família são inteligentes e não se deixam enganar, mas há incautos que acreditam em tudo e ficam apavorados, obedecendo aos mínimos caprichos do “mago”.
A vida no vilarejo não é muito diferente: lá, a religião também domina a vida das pessoas, que acreditam que as cobras têm parte com o demônio e que os “homens de ferro” representantes da igreja são seres superiores. O ápice da vida de um ex habitante da floresta e agora aldeão é servir a um desses senhores com a maior humildade possível.
Ints, uma serpente pertencente à realeza, é a melhor amiga de Leemet, a ponto das famílias passarem o inverno juntas na mesma toca. A integração entre ele e os animais da floresta, além dos humanos primatas (ainda com rabo) é tocante. Mas esse mundo vai se destruindo aos poucos e ele precisa sobreviver.
Olha, um dos melhores livros que li esse ano. Infelizmente não existe a versão em português, mas achei em espanhol e francês, além de alemão.
A versão em inglês dá também para comprar na Amazon do Brasil; é só clicar nesse link.
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