O homem ficcional

Eu não me lembro como The Fictional Man, de Al Ewing, veio parar na minha mão, mas acho que tem a ver com a capa (achei belíssima) e com o plot intrigante.

Ainda não consegui formar uma opinião se gostei ou não, mas não é um livro para se ficar indiferente. 

Vamos lá! O livro foi publicado em 2013 e a história se passa naquela época, porém, numa realidade alternativa.

As pesquisas com clones foram adiante e avançaram bastante, mas por conta de inúmeros problemas éticos e complicações, só restou aos empreendedores do setor apostar no entretenimento. Assim, resolveram contratar escritores e roteiristas para criar personagens completos em seus mínimos detalhes e “traduzi-los” em pessoas de carne e osso, que nasceriam através de tubos.

Ou seja: seres humanos projetados para serem personagens de algum filme, série ou projeto. Olhando de fora, você não consegue perceber nenhuma diferença, já que eles são de carne e osso como qualquer um. A única diferença é que eles não envelhecem; tecnicamente também não ficam doentes, mas podem morrer de acidente ou assassinados, como qualquer mortal.

A história de passa em Los Angeles, onde os Ficcionais (vou traduzir assim), como são chamados esses personagens, estão próximos de 50 mil indivíduos, a maioria homens.

Existe um tabu na sociedade sobre como se relacionar com esse povo; eles parecem “normais”, mas, como não tiveram família (seus pais são seus “autores”), nem passado, nem formação profissional, eles ficam meio que no limbo da sociedade. Se a série para o qual foram criados acaba ou o filme não pede sequências, eles precisam arrumar um emprego e se virar para viver.

Também existe um tabu quanto a fazer sexo com eles — é praticamente proibido. Porém, eles têm todos os instrumentos necessários. É claro que pode dar ruim, né? E nem falo dos Ficcionais, mas dos seres humanos mesmo e suas fantasias e perversidades. Enfim, felizmente isso não é muito explorado no livro (seria bem horrível), mas, para mim, não deixa de ser um furo no roteiro.

Bom, mas temos lá nosso personagem principal, Niles Golan, o escritor de novelas policiais, cujo maior sonho é ter um Ficcional para chamar de seu (acho que é o mais próximo de brincar de Deus que alguém pode conseguir). 

O sujeito é egocêntrico, egoísta, um hetero top daqueles da pior espécie mesmo. Trai a esposa inúmeras vezes, mente descaradamente, se acha o gênio da literatura e é cheio de inseguranças (claro). 

Depois do divórcio traumático, ele resolve fazer terapia, mas não com um terapeuta convencional: ele escolhe fazer consultas com Ralph Cutner, um Ficcional que era personagem principal de um seriado onde ele era um famoso terapeuta. Sem trabalho, resolveu abrir um consultório, mas como Ralph não tem formação, fez um curso rápido de coach e atende sob essa licença.

Niles escolheu Cutner justamente porque ele não tem formação e não vai incomodá-lo muito. Além disso, é um ficcional, alguém que, do ponto de vista de Niles, é inferior.

Curiosamente, seu melhor (e único, aliás) amigo também é um ficcional. Bob Benton é um farmacêutico que descobre uma fórmula para ficar super forte e protagoniza uma série de terror de muito sucesso, com várias releituras (tipo um Hulk). Bob foi criado para substituir o ficcional anterior a ele, que cometeu suicídio. Como protagonista de filme de terror, Bob é meio melancólico, tem a voz gutural, é grandão e parece boa gente (ele não faz o papel do monstro, só do criador, ou, no caso, o “antes”). A série também acabou e Bob está a procura de um emprego.

Tudo começa quando o agente de Niles consegue uma proposta de uma produtora de cinema que quer que ele roteirize uma nova série com base em um antigo seriado que Niles assistia quando era criança chamado “O delicioso Mr. Doll”. Eles têm um orçamento milionário e o trabalho de Niles é atualizar a história, porém, mantendo os elementos principais: a estética anos 60-70, frases de duplo sentido, mulheres bonitas e o tal Mr. Doll, que seria tipo um agente secreto.

Niles acha que essa é sua grande chance e vai logo assistir novamente o seriado (ele não se lembrava de quase mais nada, só que era sensacional), só para se dar conta de que até para os padrões dele o negócio é sexista demais, objetifica as mulheres e tem diálogos canastrões e impensáveis nos dias de hoje. Pesquisando mais, ele consegue entrevistar um dos autores e descobre que a ideia surgiu de um livro infantil, em que um soldadinho de madeira era sequestrado por uma menina para brincar com suas bonecas (por isso o Mr. Doll era cercado de mulheres). Ou seja, de alguma forma, Mr. Doll também era um ficcional.

Tem toda uma trama paralela que domina os noticiários onde há um serial killer que sai matando os ficcionais de Sherlock Holmes (são vários, devido às várias versões e releituras da obra).

Niles tem crises existenciais e parece ter sua relação com ficcionais bem complicada; é praticamente o problema central da sua vida. Ele os despreza, os humilha em todas as ocasiões de um jeito passivo-agressivo, mas não larga do seu “terapeuta” e do seu amigo.

Bom, a história não deixa de ser uma crítica a Hollywood, a indústria do cinema e uma reflexão de quanto de nós são personagens e quanto são pessoas reais, assim como quanto dos personagens são incorporados aos atores reais.

E quer uma graça? Al Ewig, o autor da obra, também é um ficcional, criado pelo roteirista Dwight Augenheimer. Al Ewig é autor e personagem de outras obras.

Enfim, esse é um meta-romance. Como eu disse, ainda não sei se gostei, mas é bem escrito e inegavelmente criativo.

A parte chata é que não tem tradução para o português. Se você quiser comprar a versão original em inglês na Amazon do Brasil, é só clicar aqui.

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