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Finalmente chegou a vez de “A thousand brains: a new theory of intelligence” (tradução livre: “Mil cérebros: uma nova teoria da inteligência”), de Jeff Hawkins. Só vi elogios e recomendações desde que foi lançado, em 2021, mas só agora tive a oportunidade de ler a obra.
E que livro mais extraordinário!
Ele começa falando que as células são muito simples; elas não podem ler, pensar ou fazer muita coisa. Mas se a gente reunir um número suficiente para fazer um cérebro, elas não somente podem ler livros, como também escrevê-los. Elas podem projetar prédios, inventar tecnologias e decifrar mistérios do universo. Como um cérebro formado por células tão simples pode fazer tudo isso é um mistério que sempre intrigou o autor (não é para menos; a coisa é realmente incrível).
Ele acredita que entender como o cérebro funciona é um dos grandes desafios da humanidade e isso ainda segue sendo um mistério.
Hawkins conta que ele leu um artigo em 1979 de Francis Erick, famoso por seu trabalho com DNA, onde eram listadas várias descobertas importantes, mas que não ajudavam a solucionar essa questão. Ele ficou tão impressionado que dedicou a vida a ir atrás dessa resposta.
Nesse livro, ele mostra o resultado de uma descoberta que ele e sua equipe fizeram em 2016 e que mudou a maneira como o assunto era estudado até então e esclarece algumas questões que até então permaneciam sem explicação.
Então o livro é dividido em três partes: na primeira, ele descreve essa teoria, que ele chama de Mil Cérebros, e explica como o cérebro aprende a construir modelos de conhecimento.
Na segunda parte, ele fala sobre inteligência de máquinas e explica porque a inteligência artificial que temos hoje em dia não é inteligente (ainda).
A terceira parte é sobre a condição humana sob a perspectiva do cérebro e da inteligência, uma vez que o cérebro tem um modelo de mundo que inclui ele próprio. Isso quer dizer que a gente percebe o mundo como um modelo; a gente não percebe o mundo real. Isso quer dizer também que as nossas crenças a respeito do mundo também podem estar erradas. Enfim, bastante discussão filosófica que vamos deixar para o final.
Mas vamos começar pelo autor, pois achei a história dele fascinante.
O CÉREBRO QUE ESCREVE
Jeff fez engenharia elétrica e estava trabalhando na Intel quando leu aquele artigo que o deixou tão impressionado. Ele então decidiu mudar de carreira e procurou o MIT, onde o projeto de doutorado dele foi rejeitado por ser muito ambicioso (a ideia era criar máquinas baseadas no funcionamento do cérebro — estamos em 1986).
Também foi recusado por Berkeley (lá ele queria focar na teoria do neocórtex); o moço então decidiu passar dois anos enfurnado na biblioteca lendo artigos sobre neurociência, psicologia, linguística, matemática e filosofia, sempre com o foco no funcionamento do cérebro. Depois desse tempo, bolou um plano: ele trabalharia de novo na indústria, na área de computadores pessoais no Vale do Silício, onde criou o primeiro tablet, o GridPad. Depois ele fundaria a Palm Computers, onde criou o famoso PalmPilot.
Mesmo com o sucesso financeiro, o coração dele ainda batia pela neurociência. Nesse ponto, ele entendeu que era hora sair para realizar seu plano, e, junto com colegas, criou um Instituto especializado em estudar o neocórtex — com 10 cientistas trabalhando full time. Depois de 3 anos, o moço resolveu fundar seu próprio time de pesquisa e acabou indo parar na Universidade de Berkeley, aquela que 19 anos antes o recusou — veja como o mundo dá voltas… agora o grupo dele foi muitíssimo bem recebido.
Não satisfeito, ele ainda criou com alguns colegas uma empresa independente de pesquisa chamada Numenta. O objetivo primário dessa empresa era descobrir como o neocórtex funciona. O objetivo secundário era aplicar esse conhecimento para construir máquinas inteligentes (que eles começaram a fazer em 2019).
Mas vamos à primeira parte do livro, que vai explicar como o neocórtex funciona.
CÉREBRO VELHO — CÉREBRO NOVO
A primeira coisa que Hawkins explica é que o cérebro foi evoluindo de maneira cumulativa; foi acrescentando novas funcionalidades, mas sem jogar fora o que já tinha. E a parte mais recente e responsável pelas questões mais complexas é chamada neocórtex. Só os mamíferos têm essa parte do cérebro, e a dos humanos é particularmente grande; ela ocupa cerca de 70% do volume total do órgão.
É como se o neocórtex compartilhasse o espaço com a parte mais antiga do cérebro; eles têm personalidades e opiniões diferentes, mas precisam cooperar para algo acontecer.
O neocórtex, apesar de mais inteligente, não tem acesso direto ao corpo (músculos, corrente sanguínea, etc), que são responsabilidade da parte antiga. Por exemplo, a função de respirar é do cérebro antigo, exceto quando ele está consciente da respiração e toma o controle (por exemplo, quando você quer prender a respiração). Mas se o cérebro antigo identificar que você precisa de mais ar, ele vai tomar o controle novamente e não quer nem saber. A manutenção do corpo é prioridade sobre tudo na opinião dele, não importa o que o neocórtex diga (ou queira).
Ao contrário do cérebro velho, que têm vários órgãos especializados dentro dele (tem partes especializadas em diferentes tipos de agressão; pense!), o neocórtex parece uma coisa só, sem divisões aparentes. Apesar disso, ele é dividido em várias partes; há regiões responsáveis pela visão, pela audição, pelo tato.
E é realmente impressionante: em 1 mm2 de superfície, tem 100 mil neurônios (de vários tipos diferentes) e 500 milhões de conexões entre eles (as chamadas sinapses).
Outra coisa interessante é que, apesar no neocórtex ter várias partes com funções definidas, estruturalmente elas são iguais. É como olhar a Terra a partir de um satélite: não dá para ver as fronteiras entre os países.
No neocórtex, o que define a função de uma parte são as conexões que ela tem. Por exemplo: a parte responsável pela visão tem muitas conexões com os olhos; a parte responsável pela audição se conecta fortemente com os ouvidos; se a parte tem conexão com outras mais complexas, ela é responsável pela linguagem. Então são as conexões que definem a função de determinada parte do cérebro, não a sua estrutura biológica.
Isso é incrível porque as áreas podem ser utilizadas para outros fins; elas são flexíveis (é a chamada neuroplasticidade). Se uma pessoa tem cegueira congênita, a parte da visão não tem uma função muito útil. Então ela pode ser reconectada com a audição e o tato, por exemplo, ficar muito mais poderosa nessas áreas.
Essa flexibilidade, inclusive, é o que nos faz aprender a programar computadores, mesmo que a evolução não tenha identificado essa habilidade como essencial no processo de desenvolvimento.
O MODELO DO MUNDO NA NOSSA CABEÇA
O senso comum diz o cérebro recebe sinais, processa e responde com ações. O cérebro antigo pode funcionar assim, mas o neocórtex não é tão simples. Por exemplo; ao ler um livro, você está recebendo muita informação e não está fazendo nada com ela no momento (e pode ser que nunca faça — ou que ela mude a sua vida).
O autor define o neocórtex de uma maneira mais objetiva: ele é uma máquina de fazer predições. O tempo todo ele faz predições sobre o que você vai ver, ouvir e sentir. Se algo não acontece como o esperado (você olha todo dia para o seu gatinho e ele é laranja; um belo dia você olha e ele está marrom — seu neocórtex apita avisando que algo está errado!). Então, é como se o neocórtex preparasse você para o que vem vindo (e ele faz as predições baseado no seu histórico).
Resumindo:
O neocórtex aprende um modelo de mundo e faz predições baseado nesse modelo.
Por exemplo: meu cérebro constrói um modelo de uma xícara de café baseado na aparência, tamanho, cheiro, como funciona, como eu o manuseio. Isso parece simples, mas a gente não nasceu sabendo. Teve que ser construído usando a experiência.
É tanta coisa que a gente não tem ideia do tanto de modelos que o cérebro precisa construir para a gente existir e do tanto de predições que ele precisa fazer o tempo inteiro. Quando ele acerta, a gente nem percebe. Quando erra (por exemplo, a xícara está mais cheia, quente ou pesada do que ele calculou), a gente leva um susto.
O volume de coisas que a gente aprende é assustador. Pense em todos os objetos que você conhece; depois pense na sua rua, bairro, cidade, lugares que você morou ou visitou. Todas as palavras, cursos, livros, pessoas. Tudo isso tem um modelo dentro da sua cabeça! Sem dizer que isso está sempre em construção, até o dia da sua morte.
Como o mundo muda (até uma música tocando muda as notas a todo momento) e a gente também se move, o cérebro fica o tempo todo atento e aprendendo e se adaptando a essas mudanças.
OS DOIS PRINCÍPIOS DA NEUROCIÊNCIA
Os neurônios são células como as outras do nosso corpo, porém com duas diferenças fundamentais:
- Ele parecem árvores, e seus galhos são chamados de axônios e dendritos;
- Eles criam pontas (ou picos) que são chamados potenciais de ação. É através deles que um sinal elétrico conecta um dendrito de uma célula com o axônio de outra. Esses pontos de conexão são chamados sinapses.
Considerando essa dinâmica, vamos ver os dois princípios.
- Pensamentos, ideias e percepções são atividades neuronais.
- Tudo o que nós sabemos está armazenado em forma de conexões entre os neurônios.
O CONCEITO DE FRAMES DE REFERÊNCIA
Acho meio complicado traduzir a palavra frame, mas, nesse caso, a ideia é de um quadro, uma estrutura, uma moldura ou esqueleto.
Dá para entender quando a gente pensa que um mapa poderia ser um frame — tem os elementos e a estrutura para mostrar um lugar — mas ele se adapta para mostrar cada lugar específico. Só o “molde” é que é o mesmo.
Mas a ideia é que o neocórtex faz predições baseadas nos movimentos do nosso corpo (seja olhos, mãos, etc). O autor e sua equipe descobriram que o algoritmo que faz essas predições não analisa completamente o ambiente; ele analisa apenas o frame com base no movimento da parte do nosso corpo em relação ao objeto observado.
Tipo: se estou segurando uma xícara, meus dedos têm as coordenadas em relação à xícara, e as predições vão ser sobre esse movimento. A mesma coisa com os olhos, o nariz e os outros sensores que o cérebro usa para perceber o mundo.
Parece bobagem, mas faz diferença; em vez de calcular tudo o tempo todo, ele foca só em uma parte, que é onde minha atenção está.
MAPAS NO CÉREBRO
Então as tarefas ficam divididas assim: o cérebro velho (ou cerebelo) tem as coordenadas do nosso corpo no espaço. Ele ajuda a gente a saber em que cidade, país, bairro ou rua a gente está; como estamos posicionados dentro dos lugares, como a nossa casa, ou se estamos sentados ou não em um sofá. Já o neocórtex faz um recorte mais fino; ele tem as coordenadas de como cada parte do nosso corpo está posicionado em relação aos objetos de nossa atenção (uma xícara de café, uma caneta ou um teclado, por exemplo).
Não parece tão complicado até que a gente se dá conta que esse sistema de “mapeamento” existe também para conceitos abstratos como matemática e filosofia, uma vez que tudo o que a gente sabe está armazenado em forma de sinapses, que são as conexões entre os neurônios.
Em resumo, ele coloca essa hipótese de funcionamento (que ele e seus pesquisadores construíram) em 4 elementos:
- Os frames de referência estão presentes em todo o neocórtex
- Os frames de referência são usados como modelo de tudo o que a gente sabe, não apenas objetos físicos
- Todo o nosso conhecimento é armazenado em posições relativas dentro dos frames de referência
- Pensar é uma forma de movimento (pois os frames de referência vão se movimentando nessa ação).
Essas coordenadas dos frames de referência são mais complexas quanto mais abstrata for a ideia. Para a nossa localização numa cidade, por exemplo, bastam duas (latitude e longitude).
Para a localização do nosso dedão em relação à alça da xícara, melhor ter três coordenadas (x, y e z). Mas e para pensamentos abstratos?
Aí é que está a questão. Se estou tentando localizar um amigo específico na minha memória, posso ter várias dimensões diferentes até chegar no “registro”onde ele está. Por exemplo, posso procurar em todos que têm uma mesma faixa de idade (seri uma dimensão de busca), quão frequentemente o vejo, se mora perto ou longe; enfim — percebe que as dimensões podem ser muitas e dependem muito da ideia que estou buscando?
O autor fala ainda sobre estudos feitos usando ressonância magnética para registrar a atividade cerebral e como ajudaram a gente a observar essas redes trabalhando quando a gente pensa em conceitos matemáticos, políticos e na linguagem, por exemplo.
A TEORIA DOS MIL CÉREBROS
Bom, já dá para ver que a coisa é complexa porque pode ser analisada a partir de várias dimensões. Então os pesquisadores decidiram escolher um conjunto para começar.
O conhecimento que a gente tem sobre qualquer coisa não está localizado em um único lugar do cérebro, mas distribuído. Quando pego uma xícara na mão, cada parte do meu olho está olhando uma parte da xícara e comparando com os milhares de modelos de xícara (e suas partes) espalhados.
Por isso a teoria é chamada de mil cérebros; porque o conhecimento de um item em particular está distribuído entre milhares de modelos complementares.
Ele faz uma analogia com a manutenção do sistema de água de uma cidade grande. Não seria inteligente que apenas uma pessoa tivesse todo o conhecimento, mas também seria impraticável se todos os cidadãos soubessem como fazer isso. A solução é distribuir esse conhecimento entre um grupo de pessoas, mas que não seja um grupo tão grande.
A ideia é dividir o sistema em partes (vamos supor que o sistema tenha 100 módulos e a equipe de manutenção seja de 50 pessoas). Então cada pessoa saberia 20 partes (várias sobrepostas com outros colegas, para facilitar a substituição de posições, caso alguém fique doente ou tire férias). Temos redundância, mas também flexibilidade.
Isso significa que cada uma das 100 partes é conhecida por 20 funcionários e cada funcionário pode manter 20% do sistema sozinho, com seu próprio conhecimento.
Isso faz com que o conhecimento fique bem protegido, robusto e acessível, com uma equipe não tão grande, mas muito eficiente.
O cérebro funciona da mesma maneira. Teoricamente, um neurônio precisaria de apenas uma sinapse para reconhecer um padrão, mas ele nunca vai usar menos de 30; mesmo se 10 falharem, ele continua capaz de fazer o trabalho.
Isso faz a gente entender porque o cérebro não possui apenas um modelo de cada coisa, mas milhares, que podem resolver a questão sob qualquer circunstância.
Até aí beleza, mas como a gente pega uma xícara de café na mesa e não enxerga mil xícaras? Se a gente coloca essa xícara sobre uma mesa, como é que o barulho é instantaneamente associado àquela imagem? Até então isso era um mistério, pois, ao contrário do senso comum, essas respostas todas não iam para um único ponto de convergência.
Então a equipe de Hawkins desenvolveu a teoria da votação. É como se numa equipe, cada um tivesse uma parte da solução com várias possíveis respostas. Cada um iria escolher uma lista de possíveis soluções de acordo com as informações que tivesse. A solução que estivesse na lista de todos os votantes seria a resposta certa.
Vamos a um exemplo: várias pessoas estão em um lugar, mas ninguém sabe onde é. Algumas podem escutar sons (uma fonte, pássaros cantando, pessoas conversando (pode ser uma praça?). Outras só pode sentir os cheiros; outras ainda conseguem ver partes (umas vêem que tem um café na esquina; outras olham a fachada de um prédio; algumas observam o calçamento). Todas então fazem uma lista de lugares possíveis — o lugar que aparecer em todas as listas (ou na maioria delas) é o que ganha a votação. E é provavelmente o lugar correto.
Essa “votação” acontece instantaneamente entre as conexões neuronais, o tempo todo, na parte que liga os dois hemisférios. E, como é preciso chegar num consenso rapidamente, apenas os neurônios envolvidos na experiência têm direito a voto. Então, o número de neurônios que vota ao mesmo tempo é relativamente pequena.
PORQUE NÃO EXISTE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Desde 1956, o campo da inteligência artificial tem passado porcinos de entusiasmo e pessimismo. Os pesquisadores chamam esses pontos de verões e invernos. Lembrando que esse livro foi lançado antes do ChatGPT, então, tudo o que ele fala sobre inteligência artificial está um pouco datado do ponto de vista do estado-da-arte, mas os fundamentos continuam os mesmos.
Aqui, o autor propõe um conjunto de critérios baseados no funcionamento do cérebro humano que podem ajudar a definir se uma máquina é ou não inteligente:
- Aprendizado contínuo
- Aprendizado via movimento
- Muitos modelos
- Uso de frames de referência para armazenar informação
Ele também propõe uma discussão sobre consciência, mas não se aprofunda muito, mas assegura que as máquinas inteligentes, aquelas de propósito geral, não serão como os seres humanos. Ele fala das condições para se criar uma máquina assim, e até cita as leis da robótica de Isaac Asimov, mas, novamente, não se aprofunda.
No final, o autor ainda fala sobre os riscos existenciais para a humanidade de uma máquina e que ele, pessoalmente, não acredita que esses riscos sejam reais (justamente porque máquinas não são como humanos: não são ambiciosas, emocionais ou carregam maldade dentro de si). Para ele, a ameaça real são os organismos simples com alta capacidade de replicação, como vírus.
E o risco maior ainda é a falta de inteligência humana, que pode levar à destruição do planeta.
Olha, apesar de conceitos complexos e de ser um livro denso, o autor faz o possível para explicar os conceitos usando metáforas, como um bom professor. Vale muito a pena acompanhar o trabalho dele e recomendo esse livro com muitas estrelinhas. De verdade.
A parte chata é que a obra não foi traduzida para o português. Mas tem para vender em inglês (clique aqui) e em espanhol (clique aqui)
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