Esse livro apareceu em newsletters, recomendações em um monte de lugares que eu frequento, a tal ponto que não pude resistir; afinal, é sobre uma biblioteca, o lugar mais sagrado do mundo para mim! Estou falando de “The little wartime library” (tradução livre: “A pequena biblioteca do tempo da guerra”), de Kate Thompson.
Eu devia ter desconfiado sobre o conteúdo só olhando o estilo da capa: uma belíssima moça sentada olhando o horizonte rodeada de livros, como se fosse uma pinup recatada com o título escrito em uma tipografia vintage…
Preciso dizer que minha percepção sobre esse livro é dúbia; não dá pra dizer que amei, mas também não cheguei a desgostar. Pode ser que os pontos que me desagradaram sejam justamente os que vão conquistar você.
Então vamos à história: Clara é uma linda de 25 anos que ficou viúva logo que a segunda guerra começou. Seu marido era um cara bacana e generoso; foi o único que a incentivou a seguir carreira de bibliotecária mesmo depois de casada, quando supostamente a mulher deveria se dedicar ao lar (eles trabalhavam juntos na mesma biblioteca). Ruby é sua assistente e melhor amiga: uma diva da sedução, sempre de batom vermelho conquistando corações por onde passa.
Enquanto Clara (a mocinha) é um modelo de recato e modéstia, Ruby vive a vida intensamente; bebe, fuma e sai com rapazes. As duas são muito unidas, também pelas tragédias pessoais — Clara se sente culpada por ter perdido um bebê durante o bombardeio em que seu marido foi morto, pois se estivesse em casa, o bebê estaria vivo (ai gente, essa foi bem forçada, né?). A sogra e a mãe chegam a ser caricatas, de tão malévolas acusando-a o tempo todo desse “crime” (o crime: trabalhar numa biblioteca).
Ruby chegou atrasada num encontro com a irmã mais velha e, nesse intervalo, a irmã morreu pisoteada nas escadarias do metrô quando uma sirene de alarme de bombardeio tocou. A mãe de Ruby é casada com um velho escroto abusivo, que bebe e bate nela e a humilha de todas as formas possíveis. Isso tudo no meio da segunda guerra mundial, onde Londres estava sendo atacada o tempo todo.
Eis que a biblioteca do bairro onde Clara e Ruby trabalham é bombardeada; as duas, imediatamente buscam ajuda e conseguem montar uma versão reduzida num túnel onde as obras do metrô foram paralisadas por conta da guerra. Nesse enorme túnel também funciona um abrigo para 5 mil pessoas cujas casas foram destruídas em bombardeios. Junto com a biblioteca também funciona um teatro.
Nesse túnel é como funcionasse uma mini cidade; tem os personagens típicos, incluindo adolescentes problemáticos e crianças órfãs, casais em crise, bons velhinhos viúvos, enfim, o pacote completo! É claro que também temos um mocinho para cada heroína e eles são nada menos que fortes, compreensivos, corajosos e bonitões.
Então, o que me incomodou nesse livro foi a avalanche de clichês e estereótipos. A sogra e a mãe de Clara são tão preconceituosas e maldosas que os diálogos chegam a ser cômicos, de tão ruins. O chefe de Clara é machista no último, corrupto, vaidoso, criminoso e tudo o mais que se possa esperar de um vilão barato.
O final é o esperado. Pensa num romance clássico bem convencional mesmo. Isso não é exatamente ruim; é como assistir a uma comédia romântica que a gente sabe muito bem como vai acabar. Mas não deixa de assistir.
Além do livro ser muito bem escrito do ponto de vista da redação (aprendi um monte de palavras novas em inglês), tem uma discussão que a autora levanta que cabe bem aqui: além da união entre as mulheres para lutar por um lugar no mundo onde elas são sempre relegadas ao papel de coadjuvante, há também o ponto em que o vilão, chefe de Clara, provoca.
Ele advoga que a biblioteca deveria limitar o número e a qualidade dos livros que as mulheres deveriam ter acesso, pois se elas lerem muito, vão acabar com seus casamentos (por que será, né?). Ele também acha que somente livros considerados “alta literatura” deveriam ocupar espaço nas prateleiras, onde quem define o que seria “alta literatura” é ele e seus pares.
Clara defende que a biblioteca deve ser para todos e não importa o que cada um gosta e quer ler; o importante é ser um lugar de acolhimento, para trocar ideias e abrir a cabeça. Ou, não menos nobre, servir de passagem para fugir da realidade e do peso da guerra mesmo que seja através de alguma história boba, mas que faça bem para quem está lendo (como esse livro, por exemplo).
Pense bem; hoje em dia, bibliotecas são os únicos lugares onde você entra, fica quanto tempo quiser e ninguém quer te vender nada. É um lugar que acolhe qualquer um, independente de suas ideias, opiniões ou crenças. Para mim, é o lugar mais sagrado e democrático do mundo, onde ideias diferentes coexistem sem conflito, com respeito e igualdade de oportunidade. Numa biblioteca ninguém julga seu passado ou visão de mundo; tem espaço para você ler o que quiser, quando quiser, e de graça. Tem coisa melhor, minha gente? Eu desconheço.
Então, esse livro tem sim lugar na estante, apesar de não ser uma obra que eu considere memorável. Pode ser um belo entretenimento; pode fazer você sonhar um pouco num dia difícil.
E sabe o melhor? Licenças poéticas da autora à parte, essa biblioteca dentro de um túnel em obras do metrô de Londres realmente existiu durante a segunda guerra, segundo pesquisas da autora.
Então, se quiser, a boa notícia é que tem versão em português e está à venda na Amazon do Brasil com o título ligeiramente diferente do original (“A biblioteca secreta de Londres”), que não faz o menor sentido, pois a pequena biblioteca nada tinha de secreta; pelo contrário, era popularíssima. Para comprar o seu exemplar, é só clicar aqui!
Comentários