Um belo dia o Conrado (meu marido) estava na Dussmann, que é a maior livraria aqui de Berlim, procurando um guia para planejar a próxima viagem quando viu “The City& the City”, de China Miéville. Ele nunca tinha ouvido falar nesse autor (nem eu), mas ficou curioso com o resumo da história na quarta capa e impressionado pelos elogios do Neil Gaiman. Pois ele leu, gostou, recomendou, e estou aqui, passando adiante.
China é um dos principais representantes da New Weird Fiction (ou “Nova Ficção Bizarra”). É chamada assim porque a história acontece em um lugar estranhíssimo, mas não dá para chamar de ficção científica porque não tem nada de ciência. É pura imaginação, da mais criativa possível.
O autor britânico é professor universitário e ganhador de vários prêmios importantes com seus romances, contos, quadrinhos e novelas.
Mas vamos a esse show de criatividade onde você fica pensando: de onde esse cara tirou essas ideias?
Bom, o começo é meio que normal; um inspetor de polícia chamado Tyador Borlú, do Esquadrão de Crimes Radicais, é chamado para investigar o assassinato de uma moça. O inspetor trabalha em conjunto com a parceira Lizbyet Corwi, tão desbocada quanto inteligente.
O interessante é que, ao longo da investigação, algumas cenas estranhas começam a acontecer e a gente começa a entender que a cidade onde eles moram e trabalham, a fictícia Beszel, no leste europeu, não é um lugar qualquer.
A questão é que desde a antiguidade, dois povos diferentes disputam o lugar. Depois de muita guerra e discussão, a solução encontrada foi que as duas cidades, Beszel e Ul Qoma iriam dividir o espaço de um jeito muito inusitado. Parte das cidades seria em territórios próprios, mas haveria um trecho, que poderia ser traduzido como hachurado, que elas iriam compartilhar.
E nessa parte fronteiriça entre as duas cidades, os cidadãos seriam treinados para simplesmente não ver a outra parte. Eu vi na resenha em português da Amazon que unsee foi traduzido “desver”. Mas não é correto, uma vez que a ideia é ignorar a existência; simplesmente não ver mesmo, como se fosse invisível. Lá (como em qualquer lugar) não tem a possibilidade de desver.
Assim, motoristas de Beszel, andando na mesma avenida que os motoristas e pedestres de Ul Qoma, simplesmente são treinados para não enxergar uns aos outros. Eles treinam os sentidos e conseguem não ver pessoas, prédios, ruas, animais, objetos, tudo. Pelo que entendi, é como se você conseguisse, pela visão periférica, reconhecer a existência, mas não olhar ou conscientemente registrar, entende? E o não ver se estende ao não sentir, não cheirar, não ouvir, não reconhecer aquilo como realidade. Não perceber, não registrar pelos sentidos (por isso não faz sentido o termo desver).
E isso tem tantas camadas de simbolismo, que nem sei dizer. Se a gente pensar nas pessoas invisibilizadas pela cor ou classe social, por exemplo. Lembro de ter lido há alguns anos sobre um experimento de um estudante de mestrado que passou seis meses fazendo limpeza na própria universidade onde estudava sem ser reconhecido por nenhum dos colegas; e era justamente o que ele queria demonstrar. As pessoas simplesmente negam a existência de uma parte da sociedade, de eventos, objetos, animais. A pessoa que faz a limpeza é como se fosse um poste ou um lixeiro; simplesmente parte do cenário, sem vida própria, e ninguém repara. Para os colegas, ele passou seis meses invisível.
Pois as duas cidades simplesmente tocam a vida e funcionam dessa maneira, ignorando tudo o que se refere à irmã gêmea. Até o prédio da prefeitura, que fica na área comum, é compartilhado — algumas salas e corredores são visíveis apenas aos cidadãos daquele município, mas não pelo vizinho.
Fico pensando também nos conflitos territoriais e nas guerras atuais; que solução mais bizarra! Mas, nessa história, a vida segue dessa maneira.
As crianças aprendem a não ver desde pequenas; turistas e imigrantes de qualquer uma das duas cidades fazem cursos intensivos de meses para aprender essa habilidade inusitada.
E a coisa é muito séria, pois a paz entre as cidades depende de todo mundo fazer o exercício de não ver. A tal ponto que existe uma polícia secreta chamada Breach (poderia ser traduzido como violação, mas vou preferir deixar no original mesmo) com poderes especiais que fiscaliza os cidadãos que estão na área hachurada; ela consegue perceber se alguém viu o que não devia ter visto, seja por distração ou de propósito.
Na maioria dos casos, a pessoa desaparece e nunca mais é vista. Por isso, todo mundo morre de medo de romper as regras, e nem os policiais estão livres disso. Isso acontece porque a polícia da cidade cuida de crimes comuns; o Breach só se preocupa com o crime mais sério e mortal de todos — ver o que não devia ser visto.
Aí, no caso do assassinato da moça, as coisas se complicam muito, pois se descobre que ela foi assassinada em Ul Qoma e transportada em um furgão pela fronteira (onde tem controles, vistos, registros e autorizações) até Beszel.
Nesse caso, as polícias das duas cidades vão ter que colaborar para descobrir o que aconteceu, e o inspetor Borlú tem que ir a Ul Qoma para trabalhar com seu correspondente do outro lado.
A moça era estudante de doutorado em arqueologia na universidade de Ul Qoma e estava metida em histórias de conspirações mal explicadas. Ao mesmo tempo, a gente fica sabendo que há grupos de revoltosos que querem unificar a cidade e acabar com o Breach.
Olha, a história é complicada e cheia de detalhes. Para quem gosta de um bom policial, muito, mas muito imaginativo, recomendo demais. Dá para aprender muito com essas duas cidades, e isso vai muito além de descobrir o assassino.
Também fiquei sabendo que o romance virou uma série na BBC (pra variar, não assisti…rs).
Não sei quão boa ficou a tradução em português, mas para comprá-la na Amazon do Brasil, é só clicar nesse link.
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