“The Midnight Library”, de Matt Haig, apareceu pela primeira vez no meu radar numa newsletter do site Goodreads (ganhou o prêmio de melhor ficção em 2020). Aí vi alguém oferecendo um volume usado num grupo de Facebook (essa rede é ótima para grupos desse tipo). Olha, melhor negócio!
Realmente a obra me surpreendeu.
O livro conta a história de Nora, uma britânica que mora numa cidadezinha do interior e que foi uma criança cheia de talentos: destacava-se na natação, amava ler, compunha, tocava piano e era vocalista em uma banda com seu irmão. Ela não sabe exatamente como aconteceu, mas crises de depressão foram acontecendo aponto dela terminar com o namorado que sonhava ter um pub e recusar-se a ir com a melhor amiga mergulhar e encontrar baleias na Austrália e abandonar a faculdade de filosofia pelo meio. Nem seu sonho de infância de estudar geleiras na Noruega foi adiante.
Aos trinta e poucos anos, sem falar com o irmão, com uma vida cheia de problemas financeiros e práticos, seu gatinho morre, ela perde o emprego de vendedora numa loja de instrumentos musicais e seu único aluno de piano desiste das aulas. Foi muita desgraça junta num dia só e ela decide que não vale mais a pena viver; conclui que fez tudo errado, jogou uma vida inteira fora tomando decisões erradas. A moça se entope de remédios e vai para a cama, esperando a tortura acabar.
Eis que ela acorda numa biblioteca gigante. Sentada em frente a ela, está a Sra. Elm, a bibliotecária de sua infância que sempre lhe apoiou nas horas difíceis, principalmente quando seu pai morreu.
A Sra. Elm lhe explica que todos os livros daquela biblioteca são versões da vida de Nora, de acordo com as decisões tomadas por ela. Os desdobramentos são infinitos, como a biblioteca. A senhora explica que ela pode ler quantos volumes quiser e, se achar que realmente vale a pena, pode até “se mudar” definitivamente para uma versão escolhida.
A biblioteca existe enquanto Nora está entre a vida e a morte, então é um momento decisivo. Cada vez que ela visita uma versão e retorna para a biblioteca, não tem mais como repetir a experiência. Aí a moça começa a testar várias possibilidades: e se ela tivesse sido uma nadadora profissional e campeã olímpica? E se tivesse se casado com seu namorado e eles tiverem um pub? E se tivesse continuado na banda e se tornado uma estrela do rock? E se tivesse ido com sua melhor amiga para a Austrália? E se tivesse se tornado uma cientista especialista em glaciares?
O interessante é que ela se transporta para a exata data e hora que ela vive no presente, só que em outra versão. Numa delas, encontra um homem que percebe que ela não está inteiramente a par das atualizações (ela acorda no meio de uma expedição em um glaciar, mas não conhece os termos técnicos, por exemplo — então tem que meio que deduzir como é sua vida atual a partir das conversas com outras pessoas).
O homem diz que também está testando versões (ele está em coma em algum lugar) e está adorando as aventuras. E que em alguma versão eles se casam e formam uma família.
Pensei: ai, pronto. Agora além de lições de vida (não é meu estilo predileto e tenho pouca paciência) ainda por cima tem romance açucarado. Mas não, viu? Continua que vale a pena.
Ela pergunta mais sobre o fenômeno que estão vivendo e ele, que numa das versões estudou física, responde de uma jeito muito bacana. Ele diz que para cada pessoa, a biblioteca tem uma cara. No caso dele é uma videolocadora, onde cada filme é uma versão da vida dele, e a pessoa do balcão era um tio cinéfilo. Mas há versões com músicas, peças de teatro, objetos, enfim, as metáforas são customizadas para cada um.
Mas e a Sra. Elm? É Deus, um anjo ou algo do tipo?
O homem diz que, se ele fosse religioso, poderia dizer que é Deus sim. Mas como ele não o é, tem uma explicação que uma colega da sua versão físico de partículas lhe ofereceu, e que ele prefere (achei isso ótimo; cada um entende como quiser — a metáfora continua customizada).
Lembra daquele experimento imaginário do gato de Schrödinger, em que um gato dentro de uma caixa pode estar vivo e morto ao mesmo tempo?
É que na mecânica quântica o estado da matéria não é definido; é uma gama de possibilidades. A gente nunca sabe onde exatamente uma partícula está, pois pode estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo (por isso, num exercício de extrapolação, o gato poderia estar vivo e morto ao mesmo tempo).
Mas se alguém abrir a caixa o mistério acaba, pois a interferência do observador (e do feixe de luz necessário para fazer a observação) faz com que a onda de probabilidades onde a partícula estaria entre em colapso e o estado é então definido (que pode ser qualquer coisa; não tem como prever).
Essa teoria abre a possibilidade da existência de universos paralelos. Aliás, para mim, a melhor frase do livro é da Sra. Elm. No começo, Nora pergunta a ela se aqueles livros levariam a universos paralelos e ela responde que sim e alguns, inclusive, até a universos perpendiculares…rsrs
Então, do ponto de vista da física (é claro que com uma gigantesca licença poética aqui), se a pessoa estivesse viva e morta ao mesmo tempo, ela poderia estar num lugar no espaço tempo em que pudesse acessar universos paralelos com outras versões de sua vida que estão acontecendo ao mesmo tempo em outras dimensões. Achei criativo.
Mas o mais legal de tudo, na minha opinião, é que a história é narrada de maneira que não pareça autoajuda barata, ou um romance bobinho. Nora não está atrás do “grande amor da sua vida” ou de consertar os erros do passado. Ela está atrás de um significado para viver, que tem menos a ver com os outros e mais com ela, com a maneira como ela vê o mundo.
Vivendo muitas alternativas de vida (mas não infinitas, já que seria tecnicamente impossível), ela começa a ver como as decisões vão se desdobrando e, principalmente, que nem tudo depende dela. Algumas coisas vão acontecer por causa das decisões de outras pessoas, que também têm as suas infinitas versões.
E mais não vou contar para não dar spoiler. Mas recomendo muito a leitura. Principalmente para quem está em crise existencial.
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